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| Foto: Guilherme Paixão/Thapcom

Com crises migratórias cada dia mais graves, a contaminar relações internacionais e a desequilibrar governos, o fluxo caótico de refugiados, sobre mares, muros e continentes, faz reviver o clássico drama bíblico dos povos errantes, como se a história tivesse regredido a tempos imemoriais.

Até pelo primitivo instinto da sobrevivência, hoje são milhões a fugir de circunstâncias trágicas de medo e de pobreza, a qualquer preço ou sacrifício, em busca de sobrevida, longe de mazelas políticas e econômicas, perseguições étnicas, conflitos fratricidas, ademais de eventos climáticos extremos. Vítimas só de desastres ambientais já são mais de 22 milhões de pessoas, sem que a sociedade internacional atue de forma consequente e coordenada, tanto por limites imponderáveis da ONU, quanto por elevados custos e implicações macropolíticas de exercício de poder que a questão suscita. Ao final, quando todos são responsáveis, ninguém é responsável.

Se no ímpeto da construção e de consolidação de fronteiras o Estado moderno atuou com poderes absolutos na admissão de estrangeiros, no período pós-Segunda Guerra o direito internacional passou a criar obrigações limitadoras à discrição estatal. A legislações draconianas de defesa nacional, na perspectiva de que estrangeiros são sempre inimigos, sobrevieram normas mais tolerantes, nacionais e internacionais, emuladas pela consciência humanista de respeito a imigrantes, percebidos como importantes atores na construção de formidáveis democracias e de exuberantes economias contemporâneas.

Hoje, as leis são mais tolerantes e seguem modelos internacionais humanizados, em particular quanto a refugiados propriamente políticos

A redação da normativa brasileira sobre estrangeiros do Estado Novo (o Decreto-Lei 408, de 4 de maio de 1938) expõe, como radiografia de época, o momento de claras hostilidades a forâneos em geral, com linguagem inequívoca e contundente: “não será admitida a entrada de estrangeiros de um ou outro sexo, aleijados, inválidos, mutilados, cegos, surdos-mudos, indigentes, vagabundos ciganos e congêneres”. Hoje, as leis são mais tolerantes e seguem modelos internacionais humanizados, em particular quanto a refugiados propriamente políticos – vale dizer, os ameaçados em seus países; não criminosos comuns, mas desafetos do poder de turno, sem garantias de integridade física e moral na maioria dos casos. Como obrigações assentes de direito internacional, asilo e refúgio obrigam Estados a proteger, como institutos consagrados até pela percepção de que protegidos de hoje poderão ser governantes de amanhã em seus países, no inelutável pêndulo que permeia o processo histórico.

Se podemos considerar as migrações de natureza política como legais, em classificação fácil, resta a difícil questão de como lidar com as imigrações então ilegais, de fugitivos anônimos de penúrias econômicas de Estados falidos, ou errantes miseráveis a escapar de tragédias climáticas e de desgovernos, com todos os sucedâneos de violência e de exploração que ainda se lhes infligem.

Como bem lembra o recém-eleito diretor-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM), o português Antônio Victorino, ex-comissário da União Europeia, não há como obrigar Estados a receber imigrantes econômicos. Imigrantes como são, por exemplo, os wetbacks, “costas molhadas”, como designados os latino-americanos clandestinos que desde sempre invadiam as fronteiras do Texas, atravessando por todos os meios as águas do Rio Grande.

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Agora, na polêmica administração Trump, a questão volta a ser discutida com veemência, embora todos os Estados possam, sem condicionantes de direito internacional, deixar de admitir estrangeiros econômicos, apenas tomando em conta interesses nacionais. Claro que a avalanche de indocumentados, com a tragédia da separação de famílias, só poderia ser enfrentada condignamente mediante óbvios projetos de cooperação internacional e de desenvolvimento nos países de origem; no curto prazo, nos países de trânsito, com a repressão aos coiotes e ao tráfico internacional de pessoas, que como crime internacional passaria a ser tratado como questão de Estado e não como questão de polícia. Como os piratas da Antiguidade, os intermediários de seres humanos só podem ser neutralizados com medidas excepcionais e vontade férrea e solidária das nações, a partir de drástica ação militar internacional. Nesse sentido, ações multilaterais são indispensáveis, com os Estados atuando coletivamente, assim como ocorreu, em outro momento histórico, com o consenso claro que levou à celebração da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados – ou Convenção de Genebra de 1951 –, a transformar meros deveres morais em obrigações jurídicas irrefutáveis.

A discricionariedade de Estados em questões migratórias, com atuações isoladas e populistas, que na União Europeia ganha foros de falência comunitária, semeando discórdias insuperáveis dentre aliados tradicionais, contribui para o agravamento desmedido de todo e qualquer problema de segurança coletiva. No caso das marés de refugiados africanos, parece realizar-se o vaticínio do poeta-presidente senegalês dos anos de 1960 Leopold Senghor, que em versos anteviu que os africanos, premidos pela miséria e pelo abandono, um dia iriam, em multidões, levantar-se de suas chagas e caminhar sobre os mares, de volta aos braços da Europa, a mãe relapsa, injusta e indiferente colonizadora cruel. Quase como nas cenas estarrecedoras a que hoje assistimos no Mar Mediterrâneo, nas flotilhas de imigrantes maltrapilhos, náufragos da consciência civilizada da humanidade, já incontáveis milhares de mortos insepultos, sem nome e sem razão.

Jorge Fontoura é professor e advogado.
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