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Era uma vez um tempo em que "a voz do povo era a voz de Deus" e por isso a vontade popular era respeitada. Esse tempo deu lugar a uma época em que a palavra e a ação dos representantes do povo referendam um jargão político que se tornou moda: "Estou me lixando para o povo". E como nada é por acaso, na leitura sistêmica aprendemos que tudo está ligado.

É com base nesse pressuposto que analiso a chacina do Uberaba, a ascensão do crack na sociedade, os salários dúplex, a corrupção na política, na polícia, nas empreiteiras, o nepotismo dos governantes. Há muito a população sinaliza a precariedade dos serviços básicos de educação, saúde e segurança que, somados a um contingente de pessoas jovens e em idade produtiva que padecem pela falta de oportunidade em relação ao emprego, vivem à margem do grupo de brasileiros (paranaenses) que ainda têm esperança.

O Paraná, como o restante do Brasil, carece da cultura de prevenção. Sempre é preciso que as coisas aconteçam para que as autoridades sintam-se compromissadas por algumas atitudes que, eficientes por um lado, são ineficazes diante do problema que as gerou. A cada dia vemos a falência da segurança pública contabilizada pelo número de mortes de inocentes, pela criminalização de jovens marginalizados pela omissão do Estado, pela decadência dos modelos de organização familiar, pela impunidade dos criminosos, pelo desvirtuamento das leis que beneficiam os algozes e suas maracutaias.

A manchete estampada nos jornais "Chacina foi obra de moleques" nos assusta pela ausência de visão crítica do autor da expressão. E daí que sejam moleques. Isso por acaso devolve as vidas que foram tiradas? Quantos mais ainda precisam morrer para provar que este modelo ação-reação está falido?

A palavra escolhida para qualificar os autores da barbárie, "moleques", traz em si três vertentes que merecem ser analisadas. Uma delas tem a conotação de irresponsabilidade, inconsequência, de quem brinca com coisa série, de quem não mede as consequências de seus atos; outro sentido diz respeito a menino de pouca idade, coisa de gente jovem; uma terceira ideia se refere a alguém engraçado, brincalhão. No fundo, todos os significados se relacionam a alguém que ainda se encontra em processo de desenvolvimento e, por isso, merece atenção especial da sociedade.

Os "moleques" detidos tinham 25, 23, 18, 21, 20 e 16 anos. Exceto pelo primeiro, todos os demais eram (um deles ainda é) adolescentes há cinco anos, quando os gestores públicos que aí estão assumiram o poder. Qual a política para a juventude? Qual programa de prevenção ao uso de drogas? Qual diagnóstico para mapear os jovens em situação de risco pessoal e social? Qual o incentivo e investimento para a ação dos Conselhos Tutelares? Qual política de estímulo e proteção às famílias? Quais as oportunidades reais de emprego e de aproveitamento do potencial criativo e empreendedor da juventude de comunidades economicamente fragilizadas?

Embora reconheçamos algumas pequenas ações no campo social, mobilizadas pelas políticas dos governos federal, estadual e municipal, muito pouco se tem a festejar. Lembramos que na gestão que antecede a esta, as Secretarias estadual e municipal da Criança e do Adolescente foram extintas. No estado, nessa nova gestão foi recriada a Secretaria da Infância e da Juventude e algumas políticas começam a ganhar corpo. Mas para esses "moleques", as oportunidades saudáveis não chegaram a tempo e, pelo histórico de nosso sistema penitenciário, os novos alunos têm tudo para brilhar na "universidade do crime", onde conquistaram suas vagas.

Nossa sociedade precisa de investimentos em prevenção, isto é, ações integradas que evitem que nossas crianças e jovens se desenvolvem sem a possibilidade de um projeto de futuro. Para isso precisamos de mais escolas de qualidade, em lugar de presídios; de mais salas de aula para que as turmas sejam menores; de educação sexual para que homens e mulheres aprendam sobre paternidade e maternidade responsáveis, assim os filhos que vierem serão amados e não simplesmente tolerados. Precisamos de oportunidades de emprego para a juventude, de professores bem-remunerados, de educação política para que os jovens exercitem com sabedoria sua cidadania, de programas de desenvolvimento pessoal e social com os jovens como protagonistas em histórias que propiciem a responsabilidade social. Precisamos vivenciar valores nas organizações para que a diversidade humana seja compreendida e respeitada, erradicando-se de uma vez por todas as diversas formas de violência em casa, na escola, na rua, na sociedade.

E onde estão nossos políticos? Ocupados com conchavos, barganhas, cargos, salários dúplex, aumento do número de vereadores, batismo de ruas, blindagem das suas fichas-sujas ou mudando de partido, conforme suas conveniências, esbanjando dinheiro pú­­blico e "se lixando" para o que almeja a maioria da população.

Não estou defendendo nem minimizando a gravidade dos fatos. Estou é responsabilizando a todos pelos rumos do país. Criança e adolescente são prioridades absolutas. Cada valor que lhes é negado em detrimento de melhores condições de vida e oportunidades, cada valor que é desviado em detrimento dos interesses maiores da população – educação, saúde, segurança, cultura, ambiente, liberdade, respeito e dignidade – deve ser denunciado.

A reportagem sobre segurança pública divulgada pela Gazeta no dia 11 de outubro acerta ao afirmar: "Ao misturar num mesmo ponto a ausência do Estado, miséria, falta de oportunidades, desestruturação familiar, drogas, desigualdade social e problemas urbanísticos, o resultado foi fatal". A omissão de muitos, responsabiliza a todos pelas mudanças que almejamos.

Araci Asinelli da Luz, doutora em Educação, é professora da UFPR.

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