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| Foto: Mike Stobe/Getty Images for USTA/AFP

Em parte, Serena Williams está certa; há um padrão moral duplo inegável quando se trata da punição pelo mau comportamento feminino, e não só no tênis.

Porém, ao bater boca com o juiz durante a final do Aberto dos EUA, em 8 de setembro, ela também errou. Não acho que seja uma boa ideia aplicar um padrão do tipo “se os homens fazem, então as mulheres também podem fazer”, mas sim tentar encontrar uma forma correta de honrar o esporte e respeitar o adversário.

Recapitulando: o problema começou quando, no início do segundo set, Serena foi advertida por receber instruções. Acontece que a culpa aqui foi de seu próprio treinador: Patrick Mouratoglou estava usando as duas mãos para sinalizar que a tenista deveria se adiantar, e lhe foi chamada a atenção por isso. Embora seja verdade que esse tipo de recurso ilegal seja muito comum e a maioria dos técnicos faça uso dele, é fato também que, a despeito de tudo o que se disse após os eventos do último domingo, eles são censurados e os jogadores simplesmente ignoram, sabendo que, a partir dali, têm de se comportar, pois a repetição da infração pode lhes custar o ponto. O atleta é responsável pela conduta de seu treinador. Na verdade, é irrelevante se viu ou ouviu as instruções que foram dadas; de qualquer forma, continua sendo uma infração.

Serena não gostou da bronca e deixou o fato bem claro para o juiz, Carlos Ramos. Até aí, nada tão ruim (é comum também que o árbitro converse primeiro com o jogador – um tipo de “conselho amigo” antes da reprimenda de verdade, para dar ao atleta a chance de “calar” o técnico. Se isso tivesse sido feito, talvez nada do que veio depois tivesse acontecido. Jamais saberemos).

Ramos não tinha outra opção a não ser puni-la com um ponto

Foi só alguns games mais tarde que a coisa ficou feia de verdade. Serena perdeu o serviço com um placar de 3-1 e destruiu a raquete – o que é uma violação explícita do código de conduta, ainda mais tendo ocorrido depois do aviso, resultando na perda automática do ponto.

Serena, então, resolveu discutir, insistindo que não tinha trapaceado, não tinha recebido instruções e, portanto, não devia ser punida. Só que não faz diferença se ela sabia que estava sendo instruída ou não; de fato estava, como Mouratoglou admitiu após a partida, e se ela percebeu ou não é discutível. Àquela altura, já tinha recebido um aviso – que não poderia ser simplesmente ignorado retroativamente – e destruído a raquete, o que é uma infração grave e automática. Ramos não tinha outra opção a não ser puni-la com um ponto.

E foi aí que a jogadora realmente começou a perder a cabeça, batendo boca com Ramos. Ela insistindo que não tinha trapaceado – o que era perfeitamente plausível, mas irrelevante –, e ele justificando uma decisão que, àquela altura, já não tinha mais poder de mudar.

Vale notar que Serena já estava bem escolada em relação a essa competição: em 2004, foi prejudicada pelo péssimo – e inegável – desempenho da arbitragem em partida contra Jennifer Capriati. Em 2009, acabou se machucando quando, no match point da semifinal contra Kim Clijsters, perdeu a cabeça com um juiz de linha, levando à penalidade da perda de um ponto que resultou na derrota automática. Em 2011, na final contra Samantha Stosur, Williams perdeu um ponto por gritar “Qualé!”, depois de acertar um forehand que parecia tê-la ajudado a recuperar o embalo em um jogo que estava perdendo. E começou a criticar violentamente a juíza, acusando-a de ter um “interior pouco atraente”, sendo penalizada por desrespeitar as regras novamente.

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Todo esse histórico no torneio, combinado, talvez, com a sensação perene de ser uma “intrusa” no esporte – sentimento que conheço bem –, ajudam a explicar por que Serena teve tal reação e, acima de tudo, por que não se conformou. Claro está que ela poderia, mas optou por não fazê-lo.

Grande parte da cobertura do ocorrido se concentrou no que ocorreu quando Serena confrontou Ramos pela segunda vez, exigindo desculpas e chamando-o de “ladrão”. Ramos optou por uma terceira violação do código, que custou a partida à estrela. Depois de uma longa discussão, o jogo foi retomado e ganho por Naomi Osaka – no primeiro grande título, seu e do Japão – sob uma chuva de vaias e um drama que, pelo que me lembro, nunca se viu igual em uma final de Grand Slam.

É discutível e difícil saber se Serena teria se safado por chamar o árbitro de “ladrão” se fosse homem, mas resumir o ocorrido a esse fato é, na minha opinião, perder o foco da coisa. Se, de fato, os homens são tratados de forma diferente pelas mesmas transgressões, então esse padrão precisa ser analisado cuidadosamente e alterado já. Só que não devemos nos avaliar com base naquilo de que imaginamos poder nos safar. Esse é o tipo de comportamento que ninguém deveria ter em quadra. Houve muitas vezes em que, jogando, tive vontade de esmigalhar a raquete em mil pedaços, mas pensei na criançada me assistindo – e me segurei, ainda que de má vontade.

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Serena foi absolutamente maravilhosa com Naomi Osaka depois da partida. Uma verdadeira campeã, dando o melhor de si; já durante a partida... bom, tudo o que tinha para ser dito foi. A maneira com que a japonesa se comportou durante e depois do jogo foi realmente inspiradora.

Mas então, há ou não há um padrão duplo no tênis?

Precisamos fazer uma análise realista e rigorosa de nosso esporte, sem otimismo ilusório e exagerado, e acabar com quaisquer diferenças e preconceitos que possam existir. O tênis é muito democrático, e temos de garantir que permaneça assim.

Entretanto, cabe também aos jogadores um comportamento respeitoso pelo esporte que amamos tanto. E, sim, todos nós já esperamos o próximo confronto entre Serena e Naomi Osaka, torcendo para que o drama se limite a seus saques magníficos e à competitividade ferrenha – com duas atletas nos mostrando como se joga, enchendo o público e o mundo de inspiração.

Martina Navratilova é radialista, ex-tenista campeã e ativista pelos direitos humanos.
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