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Donald Trump está pensando em ressuscitar a política de separação das famílias imigrantes na fronteira. E quer fazê-lo não a despeito da crueldade que representa, mas justamente por causa dela, pois a considera um fator de dissuasão eficaz. Se a medida vai deter os imigrantes latino-americanos, não se sabe, mas as histórias das crianças separadas dos pais, jogadas em instituições e até acabando perdidas no labirinto do sistema sem dúvida são desoladoras para muitos norte-americanos. Elas nos abalam mais do que qualquer outra questão relacionada ao tema.

Essas histórias nos afetam porque sabemos que os pequenos têm de ficar com suas famílias sempre que possível.

A triste verdade, porém, é que não é só dessa forma que os EUA estão colaborando para afastar as crianças dos países pobres de seus pais: bem-intencionados, os norte-americanos (e europeus e australianos) fazem exatamente a mesma coisa ao se voluntariarem e apoiarem orfanatos.

Todo ano, milhões de pessoas se apresentam para prestar auxílio no exterior – estudantes, alunos em ano sabático, membros de igrejas –, geralmente para oferecer cuidados e carinho para as crianças nessas instituições.

“É uma associação que se faz entre o voluntariado, a de que os orfanatos são os lugares em que podem ajudar mais. É a primeira ideia que vem à mente”, diz Jessi Warner, COO da Projects Abroad, uma empresa que faz a ponte entre viajantes e o trabalho voluntário.

O fato, porém, é que essas pessoas podem estar fazendo mais mal que bem. Os países ricos fecharam seus orfanatos há tempos. Décadas de pesquisas mostram que essas instituições, mesmo as melhores, prejudicam as crianças, que se sentem e se saem melhor em todos os aspectos com uma família. Dentro do núcleo familiar, elas têm atenção e engajamento constante com os adultos – mas nos países pobres, os orfanatos só fazem se expandir.

Donald Trump está pensando em ressuscitar a política de separação das famílias imigrantes na fronteira

Então o que as pessoas mais preocupadas podem fazer para efetivamente ajudar os pequenos nos países em desenvolvimento? Aplicar as mesmas estratégias que as nações desenvolvidas usam: reunificação familiar e acolhimento institucional.

“Tirar a criança de uma instituição pobre em termos físicos, psicológicos e emocionais e colocá-la em um programa de acolhimento de alta qualidade consegue gerar melhoras notáveis nas medidas de bem-estar, incluindo de QI. Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que a medida está longe de ser ideal para a maioria em longo prazo. O melhor mesmo é uma família definitiva, opção segura e acolhedora”, explica Jedd Medefind, presidente da Aliança Cristã para Órfãos, que procura incentivar o cuidado familiar para crianças vulneráveis.

Philip e Jill Aspegren são norte-americanos evangélicos atuando como missionários na Costa Rica, onde administram a Casa Viva, organização que tem filiais na capital, San José, e outras duas cidades. Embora muitos missionários cuidem de orfanatos (o que já foi o caso dos Aspegren), a Casa Viva é diferente porque nenhuma criança mora ali. Seu objetivo é ajustá-las a uma família, de preferência a sua própria.

Quando os pais abandonam uma criança ou a agência de proteção infantil costarriquenha recolhe o pequeno que esteja sendo negligenciado ou agredido, a Casa Viva cuida para que sejam bem cuidadas enquanto esperam pela reunificação – ou, se for possível, adoção. Recruta famílias para acolhimento nas igrejas locais, oferece treinamento e apoio a elas; supervisiona visitas semanais entre as crianças e suas famílias biológicas, quando for apropriado. Este ano, segundo Philip Aspegren, a instituição trabalhará com mais de 200 crianças em famílias de acolhimento.

“O pessoal que se engaja no trabalho de orfanato acha que está fazendo o melhor para as crianças porque elas recebem um teto e comida, mas o fato é que amor e cuidado são ainda mais essenciais”, diz Philip.

Na América Latina, como na maioria dos países em desenvolvimento, o orfanato é o padrão; cerca de 240 mil crianças do continente vivem nesse tipo de instituição. Matilde Luna, diretora da Rede Latino-Americana para o Acolhimento Institucional, calcula que apenas 60 mil pequenos estejam acolhidos. E está tentando aumentar esses números, oferecendo projetos piloto em cinco estados mexicanos.

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Os latino-americanos se orgulham da valorização que dão à família. “Quando uma criança perde os pais, é comum ficar com os avós ou uma tia. É espontâneo. Não há nada na cultura local que sugira que ela deva ficar em uma instituição; entretanto, o acolhimento enquanto política pública ainda não está estabelecido em muitos países”, afirma Luna.

Você deve ter ouvido as histórias de horror sobre crianças que foram agredidas pelas famílias que as acolheram, mesmo em países ricos. Esses fracassos, embora reais, representam uma porcentagem mínima dos casos, já que os sucessos não chegam a ser notícia. Um problema muito mais comum é que as acolhidas não recebem os serviços de que necessitam, e muitas acabam abandonando os estudos, engravidando ou sendo presas. (As consequências seriam muito piores e trágicas se viessem de orfanatos.) O acolhimento é negligenciado e subfinanciado; precisa de mais serviços e melhor monitoramento. Entretanto, apesar dos inúmeros problemas, ninguém nos EUA está pedindo a volta dos orfanatos; já nos países pobres, o que acontece é o contrário.

Os voluntários das nações mais ricas pioram a vida das crianças de duas maneiras: uma, contraditoriamente, abraçando-as. Por definição, quem está no orfanato é porque foi abandonado. A questão do apego vai piorando quando cada voluntário que as cobre de carinho e afeição durante uma semana ou duas... e aí vai embora.

Além disso, perpetuam um sistema que afasta as crianças de suas famílias. Para começar que a palavra “orfanato” é um termo errôneo, já que a grande maioria das crianças tem pelo menos um dos pais vivo, mas simplesmente abrem mão delas porque são tão pobres que não têm condições de criá-las.

O que acarreta o aumento de orfanatos não é o número de crianças sem mãe, mas sim os doadores e voluntários de países que não os utilizam. Alguns cobram dos voluntários US$ 1 mil/semana – e eles continuam a arrecadar fundos depois que voltam para casa. As igrejas também os patrocinam e enviam inúmeras equipes para ajudar.

Ou seja, um orfanato pode ser negócio lucrativo. Segundo a organização britânica Lumos, fundada por J.K. Rowling para promover cuidados familiares para crianças carentes, orfanatos em vários países enviam “olheiros” para as regiões mais pobres para convencer as famílias desesperadas que a instituição pode dar comida e educação para seus filhos.

Apesar dos inúmeros problemas, ninguém nos EUA está pedindo a volta dos orfanatos; já nos países pobres, o que acontece é o contrário

Se é a pobreza que gera órfãos, a solução deveria ser acabar com ela, ou diminuí-la, e não criar mais orfanatos – mas graças às doações e ao voluntariado dos países ocidentais, eles praticamente saem de graça para os governos.

A principal razão por que as autoridades não desenvolvem o acolhimento institucional é a abundância de orfanatos, mas há outros fatores que pesam: embora esses custem de seis a dez vezes mais que aquele, o cuidado familiar é mais complexo e pouco comum nessas sociedades. (Programas para ajudar as famílias a manter seus filhos são ainda mais acessíveis.)

Além disso, é difícil se gabar do acolhimento. “É muito mais fácil tirar uma foto em frente a um orfanato pintado, com o nome do doador”, constata Luna.

Os Aspegren começaram seu trabalho missionário administrando orfanatos na República Dominicana. “Fomos para lá para dar uma família às crianças, e qual não foi a nossa surpresa ao ver que elas já tinham uma. São órfãs só no nome, mas 95 por cento possuem parentes que vinham visitar a sede. Os voluntários brincavam com os 70 pequenos que moravam ali. Quando os garotos começaram a perguntar quem viria vê-los e o que iam lhes levar, percebi que estava com um problema nas mãos”, revela Philip.

O casal então decidiu que havia lugares melhores para os meninos do que instituições. Em 2003, os dois se mudaram para a Costa Rica para introduzir ali o acolhimento institucional como parte da Viva Network, com sede em Oxford, na Inglaterra, e combater a pobreza e a violência infantil com a ajuda das igrejas locais.

Marcela Torres, atualmente a coordenadora nacional para cuidado holístico da Casa Viva, ficou sabendo da existência da instituição em sua igreja, em 2014. “Nunca tínhamos ouvido falar de acolhimento, nem que uma organização na Costa Rica promovia esse tipo de coisa”, diz. Ela e a irmã, ambas na faixa dos vinte e poucos anos, viviam com os pais. “Fazia um tempão que só tinha adulto em casa, mas nós achávamos que o melhor lugar para uma criança separada da família era com outra família.”

Os Torres passaram pelo processo seletivo, com verificação de antecedentes e entrevistas, e participaram de workshops na Casa Viva durante um mês e meio. Dois meses depois de se registrarem, foram à sede buscar dois irmãos, um de nove e um de três.

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Nos primeiros dias, a família fez questão de fazer a dupla se sentir segura e de entender suas necessidades. Os meninos estavam abaixo do peso e do desenvolvimento. Ambos tinham sérios problemas visuais. O mais velho sentia falta da mãe e chorava muito; não tolerava abraços ou qualquer contato físico. O mais novo quase não se expressava emocionalmente.

Os Torres cuidaram dos problemas de saúde dos garotos, e ambos passaram a usar óculos. “Estavam acostumados a fazerem tudo sozinhos; também, não tinham nenhum adulto com quem pudessem contar”, relata Marcela. Mas eles estavam decididos a mostrar aos pequenos uma outra dinâmica familiar, com os adultos cuidando das crianças.

Uma vez por mês levavam os dois à Casa Viva para ver a mãe, que estava recebendo ajuda da agência de proteção infantil do governo. Depois de seis meses, eles voltaram para casa. O mais velho abraçou a família que o acolheu, mas os Torres nunca mais voltaram a vê-los.

Há cerca de 200 famílias como eles, que acolheram dezenas de crianças. Recebem uma quantia por cada uma, o equivalente a 16 por cento do salário médio. “É o suficiente para ajudar, mas não a ponto de se tornar uma motivação”, conta Philip.

Ele afirma que o maior obstáculo para o recrutamento é a crença entre as famílias de que vão se apegar demais às crianças. Embora a Casa Viva faça o acompanhamento psicológico dos acolhedores, Philip explica que um nível de apego é necessário. “É essa ligação de que a garotada precisa. Sabemos que será um processo doloroso para as famílias; se não for, é sinal de que devemos nos preocupar por não estarmos fazendo o que é necessário.”

As crianças deficientes têm muito mais probabilidades de serem abandonadas, e muitas famílias da Casa Viva se dispõem a oferecer tratamentos intensivo caros a elas. “Temos mais famílias dispostas a assumir esses casos do que as instituições. Uma delas, inclusive, rejeitou um garotinho por causa do lábio leporino – pois uma família o acolheu e lhe ofereceu cirurgia. Outra passou meses entrando e saindo de hospitais com um bebê que tinha várias doenças graves. Há também as que trabalham pacientemente com garotos de desenvolvimento mental extremamente limitado; um bebê de dez meses não conseguia manter a cabeça ereta, por exemplo”, exemplifica Philip.

Se é a pobreza que gera órfãos, a solução deveria ser acabar com ela, ou diminuí-la

A Casa Viva mantém um relacionamento formal com 35 igrejas e já colocou cerca de 640 crianças em acolhimento, das quais 60 por cento acabaram voltando para a família mais próxima ou outro parente. Cerca de 35 por cento foram adotadas. “Há um pequeno grupo a quem não conseguimos ajudar”, lamenta Philip, referindo-se àquelas que acabam em instituições.

Philip passa a maior parte do tempo ajudando outras organizações a instaurar o sistema do acolhimento institucional, viajando pela América Latina fazendo workshops, além dos cursos que oferece em San José. E vê progressos.

“Ainda é muito desanimador ver gente que está se mudando para a América Latina ou outras partes pobres do mundo para montar orfanatos, mas há dez anos, por exemplo, quando eu falava sobre o acolhimento familiar, ouvia comentários extremamente negativos daqueles que defendiam o modelo tradicional. Mas isso começou a mudar.”

Tina Rosenberg é escritora, já foi responsável pelos editoriais do New York Times e ganhou o Prêmio Pulitzer pelo livro “The Haunted Land: Facing Europe’s Ghosts After Communism”. A divulgação deste artigo conta com o apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
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