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A recente eleição presidencial na Venezuela foi acompanhada de interesse inédito da comunidade internacional, a revelar particular momento de valorização da América Latina. Agora, com a possível crise que se abre com o impedimento de Chávez, novamente os olhares se voltam para Caracas, na expectativa de saber-se quem ocupará o belo Palácio de Miraflores, para dirigir a segunda maior economia do Mercosul.

Na eleição, ao contrário do caos democrático que se anunciava, o que se viu foi plena legalidade republicana. É compreensível que as expectativas em relação à América Latina não sejam das melhores: a história regional é de desatino, de quarteladas e de golpes brancos, como se períodos democráticos fossem apenas breves interlúdios de ditaduras e de nossos cem anos de solidão.

De fato, o duelo de candidatos representou confronto de posições tão distantes quanto inconciliáveis, o que é difícil entender no Brasil de hoje, de atrofia ideológica e de pasteurização de projetos e de aspirações. Como aspectos positivos, houve a participação de 81% do eleitorado, com voto não obrigatório, mas com índices superiores à eleição americana. Revelou-se ainda sistema eleitoral isento e confiável, de urnas eletrônicas eficientes e seguras, garantidas por sistema transparente de fiscalização e controle. Também foi importante a liberdade de imprensa, mesmo da imprensa internacional hostil ao governo.

Se a vitória chavista foi inconteste, com de 11 pontos porcentuais de vantagem (cerca de 1,6 milhão de votos), a grande conquista foi a reconstrução urbana e civil do diálogo com a oposição. Uma oposição que soube se organizar: a outra Venezuela com seus milhões de votantes. Superou-se a falsa ideia da luta de classes après la letre, com pobres de um lado e ricos de outro, do maniqueísmo da Guerra Fria, com suas interpretações simplistas do papel do Estado e das funções do mercado. Se hoje o mundo é mais complexo, a Venezuela não está fora dele, com enorme potencial estrategicamente amazônico e caribenho, de imensas riquezas naturais, mas com seus dilemas de pobreza e de atraso, como o Brasil.

A situação de impedimento de presidente eleito antes da posse é drama nacional que bem conhecemos, a lembrar a doença clandestina de Tancredo Neves. Assim como dificilmente poderíamos hoje julgar com isenção o que ocorreu na "república do Hospital de Base", sem o ferramental da democracia brasileira de que dispomos, também não devemos julgar o processo sucessório venezuelano fora de seu contexto, apenas com o sectarismo estreito de nossas opções ideológicas. Depois de ter acompanhado a recente eleição in loco, como observador internacional, custo a crer que a Venezuela retroceda em suas conquistas democráticas para atirar-se de costas no abismo autoritário.

Com a neutralização dos incendiários de sempre, em ambas as hostes, seguindo a razão e o bom senso, não será difícil encontrar solução comumente aceitável para interpretar a ambígua Constituição do país. Com isso, pode-se exorcizar a falsa ideia da democracia como mero arreglo a serviço da legitimação de Chávez e de seu discurso de revolución, pátria y soberania. A ideia do voto de faz de conta, das instituições de mentira, da América Latina sempre a flertar com os seus santos, deuses e heróis.

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é árbitro permanente do Tribunal Arbitral do Mercosul.

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