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Da simples leitura do novo Código de Ética Médica salta aos olhos uma tensão entre a autonomia do paciente e a autonomia profissional do médico

O novo Código de Ética Médica, em vigor desde 13 de abril último, destaca o tema autonomia do paciente. Embora sem alterações substanciais, inclui o dever de obter o consentimento informado dentre seus princípios fundamentais, reforçando essa obrigação em outros artigos.

O Código reafirma alguns consensos: é dever do médico fornecer as informações necessárias à tomada de decisão pelos pacientes e respeitar sua vontade. O dever de informar vem reforçado, por exemplo, pelo direito expresso de o paciente obter cópia do seu prontuário médico.

Da simples leitura do texto desse código salta aos olhos, contudo, uma tensão – discutida por estudiosos do Direito e da Bioética e vivenciada pelos profissionais da saúde – entre a autonomia do paciente e a autonomia profissional do médico. Com efeito, o médico deve respeitar as escolhas do paciente na medida de "seus ditames de consciência" e "desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas".

Essa determinação ética é necessária e quase óbvia: o médico não pode ser forçado a atuar contra suas crenças e consciência, tampouco em desconformidade com o aceito pela comunidade médica e científica. Isso também em benefício do paciente.

O problema evidencia-se, entretanto, em situações que levam ao limite essa tensão não apenas entre a autonomia individual do médico e as escolhas do paciente, mas entre estas e as verdades da ciência. Conflitos dessa natureza já foram noticiados, como no caso dos tratamentos de indígenas, que preferem suas práticas tradicionais de medicina. Inclusive com a atuação do Ministério Público para obrigar o tratamento de menores pela medicina oficial em detrimento da decisão dos pais. É público também o debate sobre o direito de recusa da transfusão sanguínea por motivos religiosos. O tratamento compulsório dessas pessoas é realizado, com fre­­quência, sob o argumento do "perigo iminente de morte".

O novo Código é omisso quanto a esses casos. E isso nos remete a uma questão central: a exemplo do anterior, determina que o médico deve obter o consentimento informado do paciente, salvo "risco iminente de morte". Pois bem, a exceção refere-se às hipóteses em que o paciente não pode consentir e o médico deve agir assim mesmo. Mas isso poderia significar também que o médico deve agir em casos de recusa expressa do paciente em risco de morte?

Não há resposta no Código de Ética Médica. As soluções consagradas para a greve de fome e o prolongamento artificial da vida nos dão, porém, pistas de que a autonomia do paciente deve ser respeitada.

Pelo novo Código, os médicos estão proibidos de desrespeitar a vontade de pessoa em greve de fome e realizar a alimentação compulsória. Devem, em vez disso, informá-la dos riscos e tratá-la na hipótese de "risco iminente de morte".

Quanto à eutanásia, o Código manteve a proibição da abreviação da vida do paciente, ainda que voluntária. Os médicos, todavia, podem e devem respeitar a decisão do paciente ou de sua família de suspender os tratamentos e procedimentos desnecessários a pacientes terminais e incuráveis (ortotanásia).

As zonas cinzentas proliferam nessas situações, dentre elas a do desligamento dos aparelhos que mantêm artificialmente a vida. Desligar os aparelhos é considerado, comumente por médicos, bioeticistas e juristas, um modo de eutanásia, que abrevia a vida. É, portanto, ato proibido pelo Direito brasileiro. É impossível não vislumbrar a contradição entre essa interdição e a proibição do prolongamento artificial e inútil da vida.

Há ainda questões não enfrentadas pelo novo Código nem reguladas pela legislação brasileira. E talvez a maior relevância deste Código de Ética Médica seja a de possibilitar o debate público sobre temas complexos e de difícil solução. E esse debate é urgente, pois os avanços da medicina, promovidos, sobretudo, pela centralidade da genética e das tecnologias da informação, alimentam nossas esperanças, mas, ao mesmo tempo, colocam pacientes e médicos ante a necessidade de tomar decisões quase impossíveis sobre a vida e a morte.

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Adriana Espíndola Côrrea, doutora em Direito, é autora dos livros Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas e O corpo digitalizado: bancos de dados genéticos e sua regulação jurídica.

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