• Carregando...

...vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim, cantou Noel Rosa. Lembrei-me do antigo samba e dos versos para comentar a série JK, que está assumindo um caráter essencialmente hagiológico, de narrativa da história dos santos. A morte e o tempo purificam tudo e filtram as emoções mais fortes mas, para que guardemos uma perspectiva histórica, é necessário que se mantenham as coisas e os fatos passados em perspectiva sem nos prostrarmos ao pé de altares imerecidos nem nos deixemos levar por ódios e ressentimentos mesquinhos .

Juscelino Kubitschek foi um grande estrategista, um carismático incomparável e um homem cujas convicções e sonhos beiravam o delírio mais insano. Foi um articulador político impecável, conhecedor das manhas brasileiras, à vontade no clima de conchavos e espertezas pessedistas, sedutor incomparável e operador político dos mais eficientes. E tinha sorte. Herdamos dele um Brasil diferente, mais autoconfiante em suas possibilidades, integrado em sua extensão territorial que incorporou, efetivamente, à vida nacional o Centro-Oeste e o Norte com a implantação de Brasília e o desbravamento das terras do Oeste. Juscelino foi um espírito pragmático que cedo entendeu que não poderia sequer governar, quanto mais realizar cinqüenta anos em cinco com a estrutura governamental atrasada que herdou e que driblou a burocracia com seus Grupos Executivos. Que neutralizou os desafetos militares anistiando duas tentativas operísticas de levante armado contra ele e jogando militares politizados uns contra os outros.

Herdamos do período juscelinista uma notável expansão da indústria e do empresariado nacional, mas não devemos nos esquecer que um dos ingredientes da industrialização brasileira daquele tempo foi a política de substituição de importações à custa de um férreo protecionismo das empresas nacionais e também das estrangeiras aqui instaladas. Juscelino foi um dos maiores patronos daquilo que, no Brasil, pode ser chamado de "capitalismo protegido", no qual os empresários nacionais e estrangeiros aqui radicados gozavam de alegre despreocupação em relação às realidades duras da competição internacional enquanto impunham aos consumidores brasileiros produtos que não se comparavam em qualidade e preço com os importados. Justiça se faça que não foi o único, pois antes dele Getúlio Vargas e depois dele os militares também se embalaram na ilusão de que o protecionismo imitigado e permanente era uma ferramenta de aceleração do progresso nacional, quando na realidade atrasou substancialmente nosso encontro com a modernidade até que se tornasse totalmente patológico e fosse implodido pelos governos de Collor, Itamar e FHC.

JK foi, também, o administrador financeiro inconseqüente, que pouco valor dava a minúcias como o equilíbrio fiscal e o descontrole inflacionário puro e simples. A ele devemos, como mostrou recentemente neste espaço o economista Gilmar Mendes Lourenço, um tratamento absolutamente caótico das finanças públicas que fez com que as distorções inflacionárias, que já existiam desde muito antes, no Brasil assumissem caráter incontrolável, comprometendo os governos que se seguiram e alimentando a crônica crise econômica e financeira que levou o país aos impasses institucionais conhecidos.

Tudo somado e medido, acredito que JK foi uma figura exponencial na vida brasileira, apesar da corrupção que marcou vastas áreas de seu governo (quem não está acostumado estranha, como diria o humorista Paulo Silvino) e de sua herança de descontrole inflacionário e financeiro. Afinal, se fôssemos fazer uma revisão histórica minuciosa dos grandes homens, não encontraríamos apenas motivos de louvação. Napoleão Bonaparte, uma das minhas admirações mais sólidas, cercou-se de auxiliares que – com raras exceções que comprovam a regra – estariam perfeitamente à vontade na República do Mensalão graças às suas convicções bastante liberais em relação à separação entre seu próprio patrimônio e o erário francês. Dizimou toda uma geração de franceses e de europeus em geral com os três milhões de mortos e incapacitados pelas guerras napoleônicas. Mas foi uma figura incomparável na história da França, como seu modernizador, e da Europa como o homem que implodiu o sistema tradicional de forças dinásticas com suas conquistas imperiais, sistema esse que nunca se reergueu mesmo depois de sua derrota final e exílio, abrindo espaço para a modernização institucional do Velho Mundo. Guardadas as proporções, Juscelino fez parecido com o Brasil, que nunca mais foi o mesmo depois dele. Mudou para melhor e para pior, dependendo das simpatias do observador, mas certamente não foi mais o mesmo.

P.S. Dora Kramer escreveu há dias um artigo sobre o ministro Nelson Jobim que eu gostaria de ter escrito. Impecável e demolidor.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da UniFAE e membro da Academia Paranaense de Letras.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]