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China aumenta vigilância de seus cidadãos devido à epidemia de coronavírus| Foto: Divulgação/China/AFP

Entre dezembro de 2019 e o fim de fevereiro deste louco ano de 2020, enquanto se avolumavam as notícias sobre uma nova doença que se espraiava pelo mundo, trabalhei como marujo atravessando 10 mil quilômetros de mares e oceanos em um pequeno barco. Foram 74 dias partindo do meio do Mediterrâneo até um pequeno país da América Central, numa jornada de certa forma alienante em função do isolamento e poucos recursos tecnológicos para acesso à grande mídia.

Em meados de fevereiro, ao chegar a Barbados – país mais a leste no chamado Caribe –, funcionários da marina local já nos advertiam com a mão à frente, solicitando distanciamento mínimo. Aquilo soava bastante estranho, pois ainda não reconhecíamos a possibilidade de transmissão de um tal novo vírus numa simples conversa.

No domingo de carnaval, quando aterrissamos no lotadíssimo aeroporto de Guarulhos, a bizarra realidade do nosso país passou rapidamente a ser novamente nossa própria realidade. As cenas de conflito, aglomeração e tensão diante dos guichês de embarque já renderiam uma crônica. Porém, as semanas sucessivas revelaram uma realidade ainda mais esquizofrênica que aquela sentida em nossa chegada.

Hoje, vivemos em um país onde uma pandemia se sobrepõe a uma endemia. Não me refiro às várias doenças endêmicas causadas por outros vírus, bactérias ou protozoários como dengue, chikungunya, malária, tuberculose, entre muitas outras. Falo da endêmica mediocridade de lideranças dos três poderes. Lideranças que claramente podem muito pouco diante da avassaladora crise que se apresentou, já que não havia discurso pronto para enganar ninguém diante do novo – e, até então, imponderável – cenário.

A ignorância e a crise social que podem suceder as patacoadas presidenciais, ministeriais, parlamentares e judiciais são, também, um grande risco à nossa sociedade. Embora aparentemente longínqua, a realidade da Venezuela e de outros países pode, sim, se tornar espelho da nossa própria realidade.

Não há nada mais perigoso que pessoas com medo, fome e submetidas a desmandos. As máscaras da urbanidade e da solidariedade podem cair rapidamente quando não se tem perspectiva. Neste caso, decretos, mandatos e sentenças podem não nos proteger. E o “ardiloso” vírus, que está entre todos nós, terá sido apenas estopim de uma perigosa bomba-relógio social.

Tom Grando, biólogo, é especialista em Políticas Públicas pela Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).

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