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A situação de confinamento em que se acham os estudantes dentro de uma escola ‒ para onde os pais são obrigados a mandá-los ‒ transforma-os em alvos fáceis para toda sorte de interesses. São como patos em estandes de tiro. Igrejas, partidos, candidatos, polícia, Ministério Público, agentes de saúde, editoras, artistas, ativistas, grupos de pressão, não há quem não queira se aproveitar desse mercado cativo e vulnerável para vender seu peixe.

Os patos estão lá, confinados, sentados em suas carteiras, desprevenidos em sua inocência, esperando para serem alvejados. A questão é ter acesso aos estandes. Para isso, é necessário obter uma autorização, que, no caso das escolas públicas, só o Estado pode dar. Mas quem, em nome do Estado? Do constituinte ao porteiro da escola, todas as autoridades e agentes que detenham algum poder de fato ou de direito sobre a guarda dos alunos. Para não depender, todavia, da boa vontade dos escalões inferiores, convém recorrer diretamente ao legislador, como fazem os lobbies mais poderosos.

As igrejas, por exemplo, conseguiram emplacar o ensino religioso ‒ de oferta obrigatória nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental ‒ diretamente na Constituição (artigo 210, § 1.º). A matrícula, porém, é facultativa, de modo que fica respeitada, pelo menos formalmente, a liberdade de consciência e de crença dos alunos e o direito dos seus pais a que eles recebam a educação religiosa que esteja de acordo com suas próprias convicções, como estabelece a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Informados sobre o conteúdo da disciplina, os pais decidem, livremente, se querem ou não que seus filhos a frequentem.

Isso na teoria, obviamente. Na prática, não é assim que funciona. Como a disciplina é oferecida nos horários normais, o aluno acaba sendo forçado a assistir a essas aulas, para não ficar circulando pela escola sem ter o que fazer. Para assegurar o caráter facultativo da disciplina, as escolas deveriam oferecer atividades alternativas para os alunos. Em todo caso, é direito dos pais exigir que seus filhos não sejam constrangidos a ter presença nessas aulas.

Se a aula de religião é facultativa, o mesmo não pode ser dito da penitência de assistir a no mínimo duas horas mensais de filmes nacionais

Questão interessante e relevante sobre o ensino religioso é saber se um professor cristão poderia promover, em sala de aula, os preceitos da moral cristã ‒ o que inclui, evidentemente, a moral sexual. É claro que sim! As religiões, afinal, não se constituem apenas de crenças, ritos e dogmas; elas também têm a sua moralidade. Portanto, se a Constituição prevê expressamente a oferta do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, um professor de Religião está constitucionalmente autorizado a promover a moralidade da sua religião, sem que isso implique violação ao princípio da laicidade do Estado ‒ já que o ensino religioso representa uma exceção a esse princípio ‒ e ao direito dos pais sobre a educação moral dos seus filhos, visto que a matrícula nessa disciplina é facultativa.

Mas, se a aula de religião é facultativa, o mesmo não pode ser dito da penitência imposta aos alunos de assistir a no mínimo duas horas mensais de filmes de produção nacional. Isso mesmo: em junho de 2014, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei de autoria do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que inclui na Lei de Diretrizes e Bases da Educação o seguinte dispositivo: “A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, duas horas mensais”.

Na justificativa do projeto, apresentado em 2008, o visionário senador do Distrito Federal escreveu: “A única forma de dar liberdade à indústria cinematográfica é criar uma massa de cinéfilos que invadam nossos cinemas, dando uma economia de escala à manutenção da indústria cinematográfica. Isso só acontecerá quando conseguirmos criar uma geração com gosto pelo cinema, e o único caminho é a escola. A maneira, nos parece, é oferecer cinema às crianças na escola, desde os seus primeiros anos escolares”.

Traduzindo, o que o senador quis dizer foi isso: “a única forma de sustentar os cineastas brasileiros que não conseguem se garantir no mercado é fazer uma lei obrigando o governo a comprar os seus filmes; as escolas, a exibi-los; e os alunos, a vê-los”.

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De fato, o que a lei estabelece, sem contemplar a possibilidade de recusa, é “exibição obrigatória”. Portanto, a menos que seus pais recorram à Justiça, os alunos serão obrigados a fechar os olhos e tapar os ouvidos se não quiserem assistir a esses filmes. Para “dar liberdade à indústria cinematográfica”, a lei sacrifica a liberdade de escolha, de consciência e de crença de milhões de crianças e adolescentes.

Buarque ergue os olhos para o futuro e contempla, ao longe, no horizonte da sua utopia cinematográfica, a cena de uma massa de cinéfilos invadindo os cinemas para assistir a filmes de produção nacional. Enquanto esse dia não chega, a bilheteria está garantida, pois o governo comprará os ingressos e proverá a plateia.

Ninguém sabe como a lei vai funcionar. O próprio senador, numa entrevista concedida cerca de dois anos antes da sua aprovação, declarou: “Agora, o modus operandi eu confesso que não sei direito. Sabendo que tem de fazer isso, e havendo uma certa simpatia de parte dos professores, a escola encontrará o caminho”. Que seriedade! Que modelo de prudência e circunspecção! O sujeito escreve uma lei e não é capaz de dizer como ela vai funcionar. É assim que procede, como legislador, o ex-ministro da Educação de um país cujo ensino teria de melhorar umas 50 vezes para atingir o nível “lona”. Talvez ele tenha pensado: “Vai desse jeito mesmo. Pior do que tá não fica”.

Segundo Buarque, “todo cineasta que receber recurso público deverá disponibilizar uma quantidade de filmes para as escolas. (...) Penso que filmes que estão produzidos e não são distribuídos poderiam circular pelas escolas”. Imagine, leitor, o lixo que será imposto aos alunos caso essa lei venha a sair do papel.

Para o ex-ministro da Educação, “as escolas atualmente são chatas, desagradáveis, desinteressantes, as crianças aguentam a escola, elas não curtem a escola. O cinema, nesse caso, daria uma ajuda para trazer a curtição para dentro da escola. (...) Nossas crianças vão ser adultas em pouquíssimo tempo, vindo a ser público cativo e crítico da sétima arte”. Se vai ser crítico, só Deus sabe; mas cativo, com certeza, graças a essa lei estúpida, cartorial e autoritária.

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O fato, porém, é que não podemos prever o futuro, e há males que vêm para bem: quem sabe os alunos não descobrem, quando começarem a assistir aos filmes comprados pelo governo, que suas aulas não eram assim tão chatas, desagradáveis e desinteressantes?

Quem ganha com essa lei? É o senador quem responde com desconcertante franqueza: “o maior beneficiado será o cinema brasileiro”.

E os patos? Ora, quem se importa com os patos? Os estudantes brasileiros estão entre os de pior desempenho do planeta, e um senador que foi ministro da Educação apresenta e aprova um projeto de lei que sacrifica não apenas o seu aprendizado, mas a sua liberdade, para beneficiar... o cinema brasileiro!

Conhecido pela demagogia, Cristovam Buarque chegou a apresentar, em 2007, um projeto de lei, de refulgente inconstitucionalidade, obrigando os agentes públicos eleitos em nível federal, estadual e municipal, a matricular seus filhos e demais dependentes em escolas públicas de educação básica. Pois bem. Inspirados nessa obra-prima da lacração legislativa, gostaríamos de sugerir aos nobres parlamentares um projeto de lei obrigando o senador Cristovam a assistir aos filmes de produção nacional que forem exibidos nas escolas.

Miguel Nagib, advogado, é coordenador do Escola sem Partido.
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