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Amanhã completa o Brasil 140 anos de paz ininterrupta com seus dez vizinhos, que já foram onze no passado. O 1º de março original marcava o fim da Guerra do Paraguai nesse dia de 1870 (morte de Francisco Solano López).

O fato é notável, sem precedentes nem paralelos. Desconheço um grande país com tantos vizinhos com igual tradição de paz. Basta olhar para a história da Rússia, da China, da Índia, da Alemanha, da França, países de muita vizinhança. Ou para os Estados Unidos, de poucos vizinhos, mas em situação oposta à nossa: vivem em estado de guerra permanente.

Uma das consequências de quase um século e meio de paz é que se apagou no inconsciente coletivo a mais vaga lembrança das ameaças externas. Isso explica por que se mostra tão difícil convencer os brasileiros de que o país necessita gastar fortunas em armamentos dispendiosos. Não é à toa que dos quatro Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) ou dos cinco ‘países-monstros’ – aqueles que combinam território continental com população gigantesca –, isto é, os quatro Brics e os Estados Unidos, o Brasil é o único que não é nem potência nuclear nem, a rigor, potência militar convencional.

Não nascemos assim. Logo depois da Independência, tivemos a guerra contra a Argentina devido à incorporação da Cisplatina, o atual Uruguai. Após 1850, foram diversas as intervenções brasileiras nos países platinos, culminando com a "maldita" Guerra do Paraguai, que, no dizer do barão de Cotegipe, atrasou-nos 50 anos. Como escapamos dessa sina?

Os diplomatas do passado seguiram caminho simples, no fundo com três metas:

1.ª) em vez de perder tempo com diplomacia sem objetividade, protagônica e mirabolante, resolveram por negociações, de modo paciente e sistemático, como fez o barão do Rio Branco, todas as questões de limites ou outras pendentes; 2ª) defenderam os direitos e os interesses do Brasil com firmeza e fé na única ideologia que se lhes pode atribuir, a da confiança não na força ou no poder mas no Direito internacional; 3ª) obedeceram de forma estrita ao princípio de não ingerência em assuntos de terceiros.

Os que hoje pensam que esses princípios são obsoletos e devem ser substituídos por diplomacia intervencionista e ideológica enganam-se duplamente. Velha era a tendência de meter-se na casa alheia, que nos valeu guerras, ódios e ressentimentos dos que pretendíamos ‘redimir’. Ao usar a Embaixada do Brasil em Honduras como santuário de ‘putsch’ gorado contra autoridades locais, ao querer ditar à Colômbia o que é melhor para sua segurança, voltamos à perigosa política das ingerências.

Além de por em risco as bases de 140 anos de paz, a seletividade ideológica compromete a coerência na defesa de princípios. Como se pode condenar um golpe de opereta como o de Honduras e oferecer legitimidade a regimes onde presos políticos morrem em greve de fome ou que negam o Holocausto e mandam enforcar opositores?

É por isso que amanhã, data também do bicentenário de Chopin, ao ouvir os Noturnos que embalaram a agonia do poeta, deveríamos meditar a lição de Rio Branco: "O Brasil nada mais tem a fazer na vida interna das nações vizinhas (...) o Brasil do futuro há de continuar a confiar acima de tudo na força do Direito e (...) a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir".

Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda.

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