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A violência pública que vemos hoje em dia é em grande parte um reflexo das microviolências praticadas em nossa vizinhança, inclusive por pessoas próximas, muitas vezes por nós mesmos em nossas omissões

Ao assumir a Presidência dos EUA, em janeiro de 1961, John F. Kennedy enunciou uma frase proverbial: "Não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas perguntem o que vocês podem fazer pelo seu país."

Essa frase é o mote da reflexão que gostaria de fazer a seguir sobre a violência no Brasil, que repetiu requintes de crueldade no caso do assassinato do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, amplamente divulgado pela mídia nacional. A intensa comoção pública e a discussão se seguiu ao fato, contando com a intervenção de políticos, intelectuais, artistas, órfãos do Estado em geral. Debateu-se e debate-se, entre outras coisas, a diminuição da maioridade penal e a pena de morte. Aprovaram-se novas leis contra o crime até então engavetadas no Congresso, e até um filósofo renomado escreveu artigo em que torcia para que os assassinos recebessem sua paga de modo demorado e sofrido. Para se ver os extremos a que chegamos.

Todavia, dois pontos foram pouco tocados. Sem eles o debate fica empobrecido e, dessa forma, a solução do problema é inviabilizada. Falo da violência privada dos indivíduos e do Judiciário lento e viciado. Esses dois fatores se interligam e alimentam a guerra civil não declarada no Brasil. Entenda-se. A violência pública que vemos hoje em dia é em grande parte um reflexo das microviolências praticadas em nossa vizinhança, inclusive por pessoas próximas, muitas vezes por nós mesmos em nossas omissões. Não há cultivo da cidadania, isto é, consciência clara de deveres e direitos. Quantos já não testemunhamos o motorista que avança o sinal vermelho ou o vizinho que ignora a lei de repouso, liga seu alto som e assim ataca o ouvido alheio? A quantos passa pela cabeça que o direito ao carnaval não implica revogar o direito ao silêncio? E que falar do médico que pede dinheiro a mais para efetuar uma cirurgia, mesmo quando o paciente tem plano de saúde, ou o cruel que maltrata animais ali na esquina, ou o condômino que anda de sapato em cima do apartamento e se recusa a evitar o incômodo de quem está embaixo etc.? Ora, tudo isso somado compõe uma pedagogia da não-cidadania e da violência. O resultado é o que vimos. Comoção pelo assassinato do menino João Hélio. Mas muitos daqueles mesmos que se comoveram, praticam pequenas violências privadas, das quais o referido assassinato é um sintoma, e contraditoriamente não acreditam que seus atos ou omissões egoísticos contribuem para a impunidade. Mas quem viola as regras privadas, como as de seu clube ou do seu condomínio, viola e fomenta a violação das regras jurídicas do país.

O Brasil ainda vive atado ao seu passado colonial. Foi um dos últimos países a abolir a escravidão dos africanos. Quando imigrantes europeus aqui chegaram, logo boa parte foi tornada semi-escrava. Herdamos esse apego ao desumano, em nosso cotidiano. É a cultura da transgressão e da impunidade. Enquanto não se reconhecer que o mito do povo brasileiro cordial é desestruturante social e psicologicamente, será difícil enfrentar com eficácia o problema da violência, porque sempre depositaremos nas mãos da pretensa boa vontade e cordialidade alheia à solução para algo que requer de um lado regras duras, invioláveis, e de outro encarar de frente o inimigo, que nesse caso é interno. Interno no desrespeito às normas do clube, do trânsito, da escola, do condomínio...

Se é certo que nossa elite falhou na montagem do Estado brasileiro – para comprová-lo basta ler sobre nossa História Colonial, Imperial e Republicana ou um dos três grandes romances de Machado de Assis – por que não pressionar essa mesma elite a obrigatoriamente corrigir sua má-formação (regras rígidas têm de ser eficientes) e a reformar o sistema judiciário? Criminoso hediondo não pode ficar só 1/3 de sua pena na cadeia, mesmo porque ele conhece todas as artes da crueldade, e está pronto a praticá-la a qualquer momento; aqui não faz sentido a cordialidade ou o falso sentimentalismo a fazerem pensar que um rapaz de 16 anos de idade não responde por seus atos, pois se sabe que a maioria dos menores infratores conhece os artigos do Código Penal melhor que muitos dos que me lêem agora. Não faz sentido a morosidade do Judiciário, que tem de ser reformado neste aspecto e em alguns de seus cérebros (sim, há corrupção no Judiciário), daí a necessidade de um controle externo do mesmo.

O brasileiro tem de ser coibido legalmente a abdicar da violência miúda expressa em seu dia-a-dia. Estamos preparados para o fato de que quem tem direito a trio elétrico pelas ruas tem de conceder o direito ao silêncio de outrem? Uma criança não aprende a fazer o que você diz, mas o que você faz.

O aqui dito não é posição extremista, pensada no calor da discussão, mas algo que aponta o justo-meio, cujos resultados se farão sentir em médio prazo com notável retorno. Algo simples, difícil, mas que desenha um tipo de país que cada um de nós, no fundo, desejamos. "Não perguntem o que seu país pode fazer por vocês, mas perguntem o que vocês podem fazer pelo seu país."

Jair Barboza é doutor em Filosofia e professor da PUCPR.

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