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Fazer política penitenciária sem os cuidados necessários é privilegiar a repressão criminal, subtrair a ética pela técnica, por vezes até sobrepondo à política penitenciária a segurança pública

A consciência política de um povo pode ser compreendida por meio de indiciárias opiniões da população relacionadas às suas tolerâncias e às suas expectativas. Mas Política há de ser planejamento, o pensar no futuro, muito mais do que no desejo popular que, por ser desejo, cobra o imediato. Sendo assim, suponho que a população brasileira está sem rumo ideológico ou político no que diz respeito a vários assuntos: está carente de expectativas, apesar dos disfarces assumidos pelos últimos mandatários. Imagina-se que a maioria votante nem sequer tem noção do que é básico na democracia: se votou em candidatos de "direita" ou de "esquerda". As alianças que antecederam as últimas eleições foram sintomáticas a esse respeito. Pouco falou-se do futuro. O demagogo foca-se no presente, no imediato, o político sincero também valoriza o futuro da nação.

E se a população não tem opinião formada, limita-se a chancelar o status quo e a exigir soluções para problemas mais visíveis ou contemporâneos, mesmo porque raramente discute-se com precisão científica se determinado político é um idealista de direita ou de esquerda. Parto do pressuposto de que tal diferença ainda é sustentável e guarda sua pertinência prática. Assim sempre defendeu o pensador italiano Norberto Bobbio, para quem liberalismo e igualitarismo, direita e esquerda, respectivamente os grandes ícones filosóficos-políticos, ainda são movimentos ideológicos que deveriam nortear os rumos de um país.

Bobbio explica no clássico livro Direita e esquerda, razões e significados de uma distinção política: "caracteriza a esquerda perante a direita o ideal, a inspiração ou a paixão que costumamos chamar de ‘ethos’ da igualdade". Esse é o propósito básico da esquerda: combater e periodicamente corrigir as novas formas de desigualdade e autoritarismo que aparecem na sociedade. A esquerda entende que a principal causa da desigualdade é social, portanto passível de ser modificada com o tempo; a direita, por seu lado, considera que a causa da desigualdade é sobretudo natural, difícil, senão impossível, eliminá-la, seja agora, seja mais tarde. Rende-se mais facilmente ao que julga ser a natureza das coisas. Coerência, sabedoria e aptidão científica são requisitos para assumir uma das duas posturas.

Essas sumárias considerações são apenas um passo para investigar determinada instituição não menos política: a penitenciária. Não há no Brasil verdadeira e própria política penitenciária. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão vinculado ao Ministério da Justiça com a incumbência de pensar diretrizes para a citada política no Brasil, ou mesmo os Conselhos Penitenciários nos estados, não têm recebido a atenção que deveriam, talvez porque, pelo menos nos últimos governos, não se definiram politicamente. Contribuíram para que a política penitenciária fosse vista como simples administração penitenciária. Como resultado, os governos não praticaram o que haveria de ser a governance penitenciária e fizeram apenas management. A primeira, como explica D. Garland, em Punishment and modern society, é complexa, não condicionada por objetivos precisos ou operacionais, típicos da administração; é comprometida com o futuro, não apegada ao presente.

Política e administração penitenciária não se excluem, porém têm fundamentos diferentes. Embora vinculados a órgãos dos governos, tais conselhos emitem diretrizes e opiniões, mas são elas quase sempre descomprometidas com os ícones direita ou esquerda, por isso aconselham sobre management, sobre normas ou disciplinas e não sobre ideais, portanto não contribuem para a política ou governance. Fazer política penitenciária sem os cuidados necessários é privilegiar a repressão criminal, subtrair a ética pela técnica, por vezes até sobrepondo à política penitenciária a segurança pública.

Por razões de sobrevivência, os condenados deveriam saber "protestar" contra tal sistema, porém, é claro, não por meio da prática de crimes, pois esse é o caminho que rigorosamente fragiliza e favorece a exclusão social de personalidades vulneráveis. Praticar o crime seria cair em uma armadilha, dar energia à própria causa dos problemas, instrumentalizar os aparatos técnicos ou burocráticos que, pela indiferença, mantêm a administração de desumanas penitenciárias, ainda presentes por quase todo o Brasil.

A fenomenologia penitenciária producente, a governance, é promover discussão política no âmbito carcerário. Convém fazer isso para que o protesto político não surja em sua forma sombria, a exemplo das emblemáticas rebeliões sucedidas em São Paulo e Rio de Janeiro há alguns anos, capitaneadas pelas organizações criminosas nutridas no interior das penitenciárias.

Imagino seja essa ideia algo melhor do que a mera gestão de corpos ou management que os últimos governos, por equívoco, chamaram de "política" penitenciária.

Joe Tennyson Velo, advogado, é procurador do estado do Paraná. E-mail: velo@mps.com.br

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