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O Estado admite que a sociedade não pode esperar da polícia uma solução realista para os pequenos crimes

Nos últimos 40 anos, o modelo de Estado criminal fundado na ideia de prevenção do crime, prisão e ressocialização dos infratores vem acumulando fracassos e desconfiança social generalizada. Autoridades políticas e setores da segurança pública inglesa admitem, por exemplo, que uma imensa quantidade de atos e comportamentos criminais ocorre todos os dias, porém, apenas uma ínfima parte de tais atos é denunciada à polícia pelas vítimas.

Nos anos 90, autoridades oficiais britânicas afirmavam que menos de 3% do total de delitos ocorridos no país foram resolvidos pelo Poder Judiciário. No Brasil, a situação não é diferente. Do universo estarrecedor de atos e comportamentos considerados crimes e praticados diariamente, um porcentual irrisório chega à polícia e uma cifra ainda menor vai ao Ministério Público e aos juízes criminais para efeito de sentenças condenatórias.

A erosão da lei e da ordem tem levado os governos a adotarem um duplo e contraditório discurso para enfrentar a situação. Num primeiro momento, investe-se na produção de um discurso penal populista visando identificar uma parcela dos infratores como inimigos cruéis e implacáveis da sociedade. Neste caso, os novos arquitetos e justiceiros da segurança pública erguem o tom da voz e abusam das palavras em defesa da lei e ordem. Esse discurso demagógico e ultrapunitivo vale-se da manipulação das emoções e da insegurança para convencer a sociedade a se livrar de qualquer custo do sequestrador, do traficante, do estuprador, do pedófilo etc. O passo seguinte é justificar a urgência de reformas da legislação criminal em prol do encarceramento em massa, da prisão perpétua e de mais dinheiro para a construção de prisões.

Por outro lado, de maneira menos visível e sem alarde midiático, o Estado admite que a sociedade não pode esperar da polícia uma solução realista para os pequenos crimes como furtos a lojas, assaltos relâmpagos e tantos outros, que apavoram. Essa segunda estratégia simplesmente inverte a primeira, com o objetivo de convocar e responsabilizar diretamente a sociedade civil pela contenção e prevenção do delito. Essa retórica oficial de privatização e terceirização do controle do crime exige a construção de um modelo teórico de política criminal capaz de oferecer uma nova explicação em torno do infrator e da vítima.

Intelectuais integrados e setores da segurança pública apropriam-se da teoria da racionalidade econômica e tentam convencer a sociedade a ver, na imagem do pequeno gatuno, não um violador implacável e que mereça intervenção policial, mas um consumidor racional à procura de oportunidades propícias ao delito. O novo bandido profissional vê, portanto, na pessoa da vítima, uma fornecedora de ocasiões propícias ao crime. Com isso, o Estado exime-se de responsabilidade, descola o problema da explosão dos pequenos delitos em direção à vítima e a acusa diretamente por dar mole e facilitar as coisas para o bandido.

O abandono das políticas criminais preventivas por parte do Estado condena setores da classe média a dispor de recursos próprios como meio de buscar proteção, recorrendo-se ao mercado de policiamento privado. Enquanto isso, as classes subalternas, sem recursos financeiros para comprar segurança e sem proteção efetiva do Estado, não têm a quem recorrer.

Enquanto o sistema de segurança pública limita-se a dar espetáculo e dispor da maior parte de suas ações e recursos na solução e captura de certos crimes e inimigos supostamente ferozes, a multidão silenciosa vê-se cotidianamente golpeada por uma infinidade de pequenas infrações, cuja solução já não interessa aos populistas criminais.

Cezar Bueno, doutor em Sociologia, é professor da PUCPR. E-mail:c.bueno@pucpr.br

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