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Por que não se resolve a desigualdade só com melhorias genéticas
| Foto: Pixabay

Na semana passada, o The New York Times publicou um artigo sobre os resultados em longo prazo do Gene Equality Project, a iniciativa filantrópica que levou melhorias cognitivas genéticas às comunidades de baixa renda. No geral, os resultados foram decepcionantes: embora a maioria das crianças nascidas do programa tenha acabado de se formar, poucas cursaram universidades de elite, e um número ainda menor conseguiu empregos com bons salários ou oportunidades de ascensão. Com os resultados em mãos, é hora de reexaminar a eficácia e a conveniência da engenharia genética.

As intenções que embasaram o projeto eram boas. Intervenções genéticas terapêuticas, como a correção de genes que causam fibrose cística e a doença de Huntington, são cobertas pelo Medicare desde que foram aprovadas pelo FDA, o que as tornou acessíveis a crianças nascidas em famílias carentes; já reforços como o aumento do desempenho cognitivo nunca tiveram cobertura, nem mesmo pelas seguradoras particulares, sendo disponíveis apenas para as famílias abastadas. Em meio a temores de que estivéssemos testemunhando a criação de um sistema de castas baseado em diferenças genéticas, o Gene Equality Project foi iniciado há 25 anos, permitindo que 500 casais de baixa renda aumentassem a inteligência de seus filhos.

A iniciativa oferecia um protocolo comum de melhoria cognitiva envolvendo modificações em 80 genes associados à inteligência. Individualmente, cada alteração teria apenas um pequeno efeito, mas, combinadas, elas dariam à criança um QI de 130, colocando-a entre os 5% da elite intelectual da população. Esse protocolo se tornou um dos mais populares entre os mais ricos, e geralmente é mencionado nos perfis da "Nova Elite", os jovens geneticamente modificados que são cada vez mais predominantes em posições de gerência no mundo corporativo dos EUA atual. Entretanto, nenhum dos 500 participantes do Gene Equality Project obteve um sucesso na carreira que seja remotamente comparável aos membros da Nova Elite, apesar de terem recebido o mesmo procedimento.

Nosso objetivo deveria ser o de garantir que todo indivíduo tenha a oportunidade de realizar seu potencial pleno

Várias explicações surgiram para justificar esses resultados. Grupos supremacistas afirmaram que o fracasso da empreitada mostra que certas raças são podem ser melhoradas, uma vez que muitos – embora não todos – participantes eram pessoas de cor. Os teóricos da conspiração acusaram os geneticistas envolvidos de má-fé, alegando que estes tinham um plano secreto para impedir as melhorias genéticas dos mais pobres. Acontece que essas explicações são desnecessárias quando se percebe o erro básico que afeta o Gene Equality Project: os melhoramentos cognitivos só são úteis quando se vive em uma sociedade que recompensa a capacidade, o que não é o caso dos EUA.

Há muito se sabe que o CEP da pessoa é um excelente indicador de sua renda, seu sucesso educacional e sua saúde; entretanto, continuamos a ignorar o fato porque ele vai contra um dos mitos em que a fundação deste país está calcada: o de que qualquer um que seja inteligente e trabalhe muito pode progredir. Nossa falta de títulos hereditários ajudou as pessoas a ignorar a importância da riqueza familiar e alegar que todo mundo que tem sucesso batalhou para conquistá-lo. O fato de os pais ricos acreditarem que as melhorias genéticas podem aumentar as perspectivas de seus filhos mostra o seguinte: eles creem que a capacidade individual leva ao sucesso porque acham que o próprio sucesso foi resultado de sua capacidade.

Aqueles que pensam que a Nova Elite está ascendendo a escada corporativa pura e simplesmente na base do mérito devem se lembrar de que muitos deles estão em posições de liderança, mas que, historicamente, o QI tem uma relação ínfima com a eficiência como líder. E também levar em consideração que a modificação genética para altura geralmente é adquirida por gente de posses, e a tendência a encarar os indivíduos mais altos como líderes mais capazes está mais do que provada. Em uma sociedade cada vez mais obcecada com credenciais, ser geneticamente modificado é como ter um mestrado em Administração de Empresas de uma das universidades da Ivy League: é o símbolo de status que faz do candidato uma aposta infalível de contratação, e não um indicador de competência.

Leia também: Não é porque podemos criar bebês geneticamente modificados que devemos fazê-lo (artigo de Ryan T. Anderson, publicado em 21 de dezembro de 2018)

Leia também: Valores invertidos no país dos ídolos inventados (artigo de Esther Cristina Pereira, publicado em 28 de maio de 2019)

Isso não significa dizer que os genes associados à inteligência não ajudam a criar indivíduos de sucesso – é claro que sim. São parte essencial do círculo vicioso do feedback positivo: quando a criança demonstra aptidão para determinada atividade, é recompensada com mais recursos – equipamentos, aulas particulares ou encorajamento – para desenvolvê-la; seus genes permitem que traduza esses meios em desempenho melhorado, que reconhecemos/recompensamos com recursos ainda melhores, e o ciclo continua até que, já adulta, ela conquista uma carreira de sucesso excepcional. Entretanto, as famílias de baixa renda vivem em bairros onde as escolas públicas contam com pouca verba e não têm condições de manter esse círculo; o Gene Equality Project não ofereceu nada além de genes melhores e, sem esses meios adicionais, o potencial integral desses elementos nunca chegou a se concretizar.

De fato, estamos testemunhando a criação de um sistema de castas, não baseado em diferenças biológicas de capacidade, mas um que usa a biologia como justificativa para solidificar as diferenças de classes já existentes. É essencial pôr um fim nisso, mas, para tanto, será preciso muito mais do que melhorias genéticas gratuitas fornecidas por uma fundação filantrópica; será preciso lidar com as desigualdades estruturais de cada aspecto de nossa sociedade, desde a moradia até a educação e os empregos. Não resolveremos a questão tentando melhorar as pessoas; só conseguiremos resolvê-la tentando melhorar a forma como tratamos os outros.

O que não significa necessariamente que o Gene Equality Project é algo que nunca deva ser repetido – só que, em vez de encará-lo como a cura para uma doença, podemos encará-lo como um exame de diagnóstico, um procedimento que pode ser feito a intervalos regulares para medir a distância a que nos encontramos de nosso objetivo. Só quando os beneficiados pelas melhorias genéticas cognitivas se tornarem tão bem-sucedidos como aqueles cujos pais lhes compraram esses melhoramentos é que poderemos crer que vivemos em uma sociedade igualitária.

Por fim, vamos recordar um dos argumentos feitos durante o debate inicial pela legalização das melhorias genéticas: muitos defensores da técnica alegaram que tínhamos a obrigação ética de buscar esse tipo de aprimoramento por causa dos benefícios à humanidade que dele resultariam, mas o fato é que certamente muitos gênios se perderam porque seu potencial de contribuições inestimáveis foi sufocado pelo ambiente pobre em que vivem/viviam.

Nosso objetivo deveria ser o de garantir que todo indivíduo tenha a oportunidade de realizar seu potencial pleno, independentemente das circunstâncias de nascimento. Essa atitude seria tão benéfica à humanidade quanto a busca de melhorias genéticas cognitivas, e muito mais eficiente no cumprimento de nossas obrigações éticas.

Ted Chiang é escritor, vencedor dos prêmios Hugo, Nebula & Locus e autor de História de sua vida, conto que serviu de inspiração para o filme A chegada, indicado ao Oscar em 2017.

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