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Parece ser majoritária a ideia de que realmente existe lacuna legislativa no direito brasileiro quanto à questão da chamada herança digital. A preocupação com o destino a ser dado aos bens digitais após a morte é totalmente legítima; posto que muitos armazenam suas mensagens, imagens e livros na memória de smartphones e computadores, ou optam pelo armazenamento em “nuvem” na internet. Contudo, parece não fazer sentido afirmar uma diferença ontológica entre os direitos relativos às imagens, mensagens e obras intelectuais armazenadas em impressos tangíveis e os direitos relativos a arquivos digitais. O projeto do Novo Código Civil (PL 4/2024, do Senador Rodrigo Pacheco) parte da distinção entre bens jurídicos digitais patrimoniais, bens jurídicos digitais existenciais e bens jurídicos digitais híbridos.
Ao argumento de que os bens digitais existenciais teriam caráter personalíssimo, o PL do senador Rodrigo Pacheco diz que estes bens não passariam aos herdeiros em virtude da sucessão legítima. Tais bens seriam destinados aos herdeiros apenas se houver testamento autorizando expressamente tal acesso. É o que disse o senador Rodrigo Pacheco nas razões do seu projeto de lei: “Os bens digitais existenciais e os aspectos pessoais das situações híbridas só são transmissíveis por sucessão testamentária, respeitada a vontade declarada pelo titular dos bens digitais, que deve ser compatível com o ordenamento jurídico e com proteção à dignidade da pessoa humana”.
Os bens digitais existenciais seriam intransmissíveis por força de lei por serem projeções de direitos da personalidade. Fala-se também em uma eficácia post mortem do direito a intimidade; o que justificaria a restrição de acesso a tais bens existenciais em nome da proteção deste relevante direito da personalidade.
Em um país no qual até mesmo a população instruída não tem o costume de fazer testamento, exigir a feitura de testamento para que alguém possa ter acesso às fotos e mensagens de seus entes queridos falecidos é uma exigência descabida
Entretanto, tal construção teórica parece-nos artificial e dissociada da tradição jurídica brasileira. Some-se a isto a incompatibilidade de tal regramento com o regime jurídico do chamado ECA Digital, Lei Federal 15.211, de 17 de setembro de 2025 (fruto do PL 2.628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira).
A priori, não há que se falar em direito a intimidade ou a privacidade do morto, posto que a morte põe fim a personalidade jurídica da pessoa natural. Neste sentido, também não cabe falar em um “direito” do morto à intimidade ou ao sigilo de correspondência. Se tal direito tivesse prevalecido, não conheceríamos hoje o teor das cartas trocadas entre o Imperador Dom Pedro I e a Marquesa de Santos.
Ora, considera-se que as cartas missivas e livros domésticos pertencem de pleno direito aos seus herdeiros. Tal direito é assegurado no § 4º do art. 740 do Código de Processo Civil. Se o falecido não tem herdeiros conhecidos, cabe ao juízo do domicílio do falecido nomear um curador para administrar a herança jacente e a investigação sobre o possível paradeiro dos herdeiros do falecido. No intuito de apurar a existência de tais herdeiros, o juízo poderá examinar “reservadamente os papéis, as cartas missivas e os livros domésticos” (CPC, art. 740, § 4º).
Após tal exame realizado pelo magistrado, deverá ele mandar empacotar e lacrar tais bens “para serem assim entregues aos sucessores do falecido” (CPC, art. 740, § 4º), ou deverá determinar a eliminação de tais objetos caso os sucessores não sejam localizados. Neste sentido, se cabe ao juízo proceder com a entrega de tais bens aos sucessores do falecido, é porque nosso direito pressupõe que estas coisas (cartas missivas e livros domésticos) pertencem de pleno direito a eles. As expressões “cartas missivas” e “livros domésticos” abrangem quaisquer escritos e imagens enviados e recebidos pelo autor da herança.
Some-se a isto o fato de que o recém aprovado ECA Digital (ou Estatuto Digital da Criança e do Adolescente), que trata da proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais assegura aos pais o direito de fazer uso de ferramentas de supervisão parental em relação a seus filhos nos ambientes digitais (art. 3º, parágrafo único). O art. 18, I do ECA Digital determina que: “As ferramentas de supervisão parental deverão permitir aos pais e responsáveis legais: I – visualizar, configurar e gerenciar as opções de conta e privacidade da criança ou do adolescente”.
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Assim, em virtude do direito a supervisão parental, os pais terão autonomia para gerenciar as configurações de privacidade dos produtos e serviços de tecnologia da informação utilizados por seus filhos menores, e certamente poderão ter amplo acesso aos dados armazenados de seus filhos nas redes sociais. Se poderão ter acesso a quaisquer informações de seus filhos menores ainda vivos, qual é a justificativa para negar acesso a tais informações caso algum filho menor de idade venha a falecer?
Em um país no qual até mesmo a população instruída não tem o costume de fazer testamento, exigir a feitura de testamento para que alguém possa ter acesso às fotos e mensagens de seus entes queridos recém falecidos é uma exigência descabida. O fato é que o PL do Novo Código Civil já envelheceu mal, posto que se encontra em franco descompasso com o ECA Digital. Por fim, a ideia de impedir o acesso dos herdeiros aos dados do falecido armazenados na nuvem na internet ou em redes sociais termina por converter as Big Techs em herdeiras do falecido sem que exista qualquer lei ou testamento que as legitime a suceder. Já passou da hora de arquivar este polêmico projeto de Novo Código Civil, que pretende introduzir grandes inovações, mas terminou por ficar obsoleto rapidamente.
Venceslau Tavares Costa Filho é professor universitário, advogado e participou da comissão de juristas que elaborou o projeto do atual Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (Lei Federal 15.211, de 17 de setembro de 2025).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



