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Como se toda a tradição da história do confronto ideológico se dissolvesse no ar, o vencedor, de direita, teve eleitores inesperados. Recebeu votos de segmentos progressistas, operários, intelectuais e jovens, além de ultraesquerdistas radicais que não votaram em Ségolène Royal.

Os paradoxos dessa eleição não param aí. A candidata derrotada de esquerda teve, da mesma forma, apoios insólitos. Recebeu votos de reacionários e eleitores de centro, seduzidos por seu cantar de sereia, sua figura magnífica e seu discurso impecável de mãe da pátria. Também por suas propostas conservadoras como a tutela da família e dos bons costumes, que atraíram católicos e laicos, órfãos do Estado total e eleitores cativos da França que não quer mudar.

O capítulo das feministas é curioso. Considerada ativista "ma non troppo", apesar do lema de campanha "O tempo das mulheres chegou!", a candidata recebeu fogo amigo de seu próprio território. O jornal Libération, em matéria recente, foi obrigado a defendê-la de acusações no mínimo engraçadas: excessivamente "royal" e elegante, Ségolène não seria feminista o suficiente, pois nunca usava calças compridas para marcar sua posição e tampouco fora vista em passeatas.

Apesar de tudo, o eleitorado francês é, no atacado, insuspeito em sua cultura política e excelência. O nível do debate é altíssimo e todos parecem ter razão. Bem ao contrário da pobreza de idéias que se constata em outros países, em outros continentes, nos quais, no mais das vezes, o discurso é desolador e os personagens assustadores. Com isso, vota-se em quem parece representar o mal menor.

A democracia francesa, contudo, não tem sido apenas "olimpo" de virtudes republicanas. Mesmo nessa eleição, marcada pela qualidade dos contendores, houve candidatos caricatos, de "ismos" radicais caducos. Não é a primeira vez que o presidencialismo francês surpreende.

Em outubro de 1920, o presidente Paul Deschanel ficou louco em pleno mandato e chegou, literalmente, a cair do trem. Milagrosamente não se machucou, e saiu, anônimo, caminhando pelos trilhos da França profunda. O operário da ferrovia que o encontrou em meio à noite, sujo e de pijama, custou a crer no que ouvia: "je suis le Président de la République Française!"

Mais tarde, um palhaço no sentido circense da palavra, que fazia rir às custas da política ao satirizar o gaullismo piegas e empedernido, fez tremer a Quinta República quando anunciou sua candidatura: "Já que os políticos fazem humor, por que não um palhaço para presidente?" Filho de um imigrante napolitano e sobrevivente da adolescência pobre em Paris, o palhaço Coluche desafiava partidos e sindicatos em 1980 para arrancar em sua campanha presidencial com 19% das intenções de voto. Ao sofrer incontáveis pressões de setores que achavam que um operário das artes e do espetáculo não poderia ocupar o Palácio Elysée, Coluche retirou sua candidatura, para se consagrar como um dos grandes ícones da cultura popular.

Hoje, os franceses têm pressa em virar a página. Com um Estado obsoleto, crescimento estagnado e alto índice de desemprego, o país se ressente da responsabilidade de colocar em risco o progresso da União Européia com o repúdio ao seu tratado constitucional.

Bem a propósito, com fina retórica e erudição, forjada na melhor cultura universitária, Nicolas Sarkozy sinaliza para reformas profundas em prol da modernização do país, com austeridade, e com o resgate dos valores de ordem e disciplina. Tarefa nada fácil. Por ironia da história, se a questão de gênero marcou o debate eleitoral recém-findo, o novo presidente enfrentará o desafio de implementar duras reformas, como, até agora, só duas mulheres conseguiram – Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Angela Merkel, na Alemanha.

Jorge Fontoura é doutor em direito e vice-presidente do Centro de Estudos de Direito Internacional (Cedi-DF).

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