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O tempo, que não alivia na curva, não dorme no ponto, nem pára na estação, segundo uma parábola ainda não mencionada por Lula, transforma culturas e conceitos à medida que os anos passam e os fatos se projetam mais nítidos e reais.

Quando menino, assisti com admiração a vários ventríloquos que, beneficiados pela distância que os separava do público, graças ao palco, se arvoravam em "falar pelo ventre", coisa incomum entre os homens da época. O mais famoso entre nós era o Baptista Junior, pai das cantoras Linda e Dircinha Baptista. Mas havia muitos outros por esses palcos de Deus. Um daqueles a que assisti se apresentou na Lapa, bem depois do cerco. Era um mulato miúdo que se apresentava como Pery Júnior e levou alguns trocados da população legendária. À distância, a movimentação labial reduzida simulava que o artista usava o ventre (daí a origem da palavra) e não a boca. Mas a televisão chegou e as bochechas dos atores desvendou o segredo: os famigerados falavam mesmo pela boca, contendo os movimentos labiais invisíveis pela visão que a platéia tinha do palco, mas evidentes diante das câmeras. E os ventríloquos desapareceram, passando a falar igual aos demais, abandonando os bonecos, que emudeceram para sempre.

Certa feita apresentou-se, com um espetáculo inédito, nas ribaltas do Avenida, "Amom, o mais perfeito imitador do belo sexo." O povo lotou a platéia, o "foier", as frisas de veludo vermelho e as galerias do elegante teatro, a fim de examinar um ser humano que hoje encontram de graça em qualquer quadra da Rua XV, ou em desfiles que se promovem nas grandes cidades. Hoje transformistas como aquele têm suas associações, suas confrarias, suas boates. Estão inseridos entre os demais, numa naturalidade que a sociedade absorve em nome da exclusividade da vida que "pertence a cada indivíduo e a ninguém mais". No meu tempo de menino, eram famosos em Curitiba um funcionário dos Correios chamado Leandro, o tenente Romeiro, que gostava de assistir os exames de saúde para os convocados pelo Exército e um alfaiate muito competente, que atendia na primeira quadra da Rua André de Barros. Falava-se também em um grêmio "Os Tulipas", que congregava a classe e se reunia no Edifício João Alfredo.

Certa feita, durante uma viagem à Europa, encontrei uma revista que detalhava a vida amorosa de Gary Grant e Randolph Scott, morando sob o mesmo teto, exacerbando flagrantes da existência em comum, mas sem agredi-los. Um registro documentado por fotografias da casa e das maneiras de cada um, mas sem um laivo de crítica ou condenação. De minha parte, não dou conselhos, não faço advertências, nem me associo a críticas por condutas. A vida é uma dádiva muito pessoal. Quem morre, morre sozinho; ninguém vai morrer junto. Por isso, devemos nos abster de palpites, influências e aconselhamentos, coisas que só encontram razões no relacionamento entre pais e filhos.

A expressão "se eu fosse você deixava de fumar" ou coisa que o valha, é como relógio parado: não adianta.

Mesmo porque a amizade entre os cidadãos é um sentimento que não outorga o direito de influenciar e determinar a conduta de quem quer que seja. E os que extrapolam tais limites oferecem razões para serem incluídos no clube dos chatos. Uma classe cujos integrantes ignoram fazer parte.

Nunca ouvi alguém dizer a seu próximo: "Você é chato". Afinal, se não existisse a hipocrisia, não existia a sociedade. O chato fala muito e bem de si, conta vantagens a mancheias, se aproxima de nosso ouvido, pega em nosso braço, mente desbragadamente, cria, inventa e conta jurando por Deus ou pela mãe. Gosta de falar próximo, na cara do interlocutor, soltando perdigotos.

Se você estiver perambulando pela Praça Tiradentes e encontrar um desses espécimes, os chatos, não demonstre alegria e tente ficar calado. Após dois ou três minutos, olhe o relógio e adote uma fisionomia ansiosa e preocupada. Dê um passo de 70 centímetros para o lado esquerdo olhe o relógio da Catedral, denotando surpresa, e confira com o seu. Nesta hora você já está preparado para fazer uma cara pouco simpática e, com ela, alegar um caso sério e urgente para o qual está atrasado. Use essa trama, dê um sorriso falso, mas sem exageros, e se escafeda como uma raposa perseguida.

Com o desenvolvimento da instrução e da educação, penso que essa classe tem diminuído, graças a Deus. Os que perseveram são mais discretos e toleráveis, uma vez que os normais, embora educados e cavalheiros são deixam de revelar certos traços característicos de um saco cheio em evolução.

Não gosto nem do cheiro dos que vêm cochichar nos meus ouvidos para dizer banalidades. A vida não pode ser levada à vontade, como se fosse um lago azul enfeitado por cisnes brancos ou malhados. Ela tem suas arapucas e armadilhas, para as quais temos de estar atento, sob pena de amanhecer com formigas entrando e saindo pela boca. Em Castro eu fazia política nos meandros do PSD, sob as graças do coronel Vespasiano Carneiro de Mello e ordens do interventor Manoel Ribas. Nesse ambiente de politiqueiros e politicagens, aprendi muita coisa que não poderia dizer nem à minha mãe.

Queriam que eu mentisse, inventasse, traísse, trocasse as cédulas dos votantes ingênuos, uma série de malandragens que não gosto nem de repetir. Não fiz nada disso e quando me candidatei a vereador fui o mais votado de todos os tempos e eleito presidente da Câmara Municipal.

Lauro Grein Filho é presidente da Academia Paranaense de Letras e da Cruz Vermelha Brasileira do Paraná.

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