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Mesmo com toda a sofisticação da ciência política moderna e das suas técnicas de estatística, o conceito básico de democracia é quase tão intratável hoje quanto sempre foi. Em uma grande medida, nós pensamos por meio de imagens mentais, de símbolos formados a partir de nossos sentidos. “Teoria”, em um dos significados gregos, é “ver”; a frase theron oráo é cheia de significado na filosofia grega: eu vejo o divino, a ordem olímpica harmoniosa. O trabalho conceitual é, então, a etapa mais básica da investigação intelectual. Ele responde à pergunta: do que estamos falando? Mas, porque o material de trabalho é a linguagem e a lógica, há uma variedade de combinações de proposições possíveis.

Desde o filósofo escocês W.B. Gallie, tornou-se comum tratar a democracia como um “conceito essencialmente contestado”, um tipo de conceito sujeito a infindáveis disputas, não resolvível por qualquer argumento, mas que pode ser sustentado adequadamente por argumentos coerentes em seus próprios termos. Essa solução não é inteiramente satisfatória, mas é pragmática. O problema mais evidente é que qualquer um poderia afirmar ser democrático – de alguma forma. No fim das contas, podemos nunca sair do mesmo lugar.

A democracia oferece a possibilidade de controle sobre os governantes e de escolha sobre os caminhos a tomar

Mas conceitos não contam a história toda. Se símbolos abstratos e linguagem têm seu papel, é fundamental lembrar que eles se referem a uma realidade concreta, que existe um mundo independente dos nomes que usamos para descrevê-lo. Considerando que somos, em grande medida, herdeiros de uma tradição filosófica da Europa continental, dada a abstrações, é fácil perder de vista o próprio objetivo da investigação intelectual.

Alguém já viu a democracia andando por aí? Conceitos não são tão interessantes se não temos indicações e procedimentos para reconhecê-los. O cientista político John Gerring argumenta que conceitos e sua percepção são inseparáveis. “Operacionalizar” é um termo que significa atribuir características observáveis a um fenômeno, ou seja, “desempacotá-lo”; o resultado da operacionalização são indicadores.

Ainda que indicadores sejam meras sombras da teoria filosófica que lhes deu origem, eles são tão importantes quanto. Esse procedimento nos permite ligar conceitos abstratos a observações empíricas. De “democracia” chegamos a formas específicas, reais, de conectar governantes e governados, o que é a essência de um sistema (ou regime) de governo. Manter uma ideia “empacotada” é uma excelente maneira de nunca ter de se responsabilizar pelas tentativas de implementá-la. A linguagem é uma ferramenta maravilhosamente maleável, afinal de contas.

A metáfora do cientista político Adam Przeworski – da democracia como um altar onde cada um coloca sua oferenda – mostra o quão ambígua a democracia se tornou. Contudo, ela tem um grande valor transformativo, desde a economia à cultura, e nenhuma alternativa real se mostra tão promissora. O seu grande rival, o autoritarismo modernizante chinês, não é nem fácil de replicar nem propriamente sustentável.

A democracia oferece a possibilidade de controle sobre os governantes e de escolha sobre os caminhos a tomar. Como lembra Robert Dahl, ela é uma aposta na capacidade humana de autonomia, de escolher o próprio destino. E temos boas razões históricas para não confiar em vanguardas “iluminadas” que decidem pelos outros.

Fernando Archetti é pesquisador do Instituto Atuação, organização que realizará a 2ª Semana da Democracia, em Curitiba, no dia 15 de setembro.
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