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Por décadas, representamos um cargo, uma autoridade, uma posição social. Fizemos isso por tanto tempo que acabamos confundindo nosso ser com nosso fazer, nosso eu com nosso papel profissional

A aposentadoria é, em nossa cultura, um assunto polêmico.

Para alguns, é vida boa, férias, tempo livre para ler, brincar, namorar.

Para outros, um horror, causado pela perda da rotina do trabalho, da utilidade social, do poder. Uma chatice, que se resume a um par de chinelos, um pijama e nada para fazer.

De fato, ela pode ser uma coisa ou outra, ou ainda nenhuma delas.

A suprema pretensão dos homens, aposentados ou não, sempre foi e sempre será a felicidade. Trabalho, férias, atividades diversas, convívio, são caminhos que usamos, às vezes sem sucesso, na incansável busca de uma vida feliz.

"A principal verdade da arte de ser feliz continua sendo a de que tudo depende muito menos daquilo que se tem ou representa do que daquilo que se é." (Arthur Schopenhauer).

Não há dúvida de que se aposentar significa abrir mão de grande parte daquilo que se tem e principalmente daquilo que se representa. É a hora de ser o que se é.

Por décadas, representamos um cargo, uma autoridade, uma posição social. Fizemos isso por tanto tempo que acabamos confundindo nosso ser com nosso fazer, nosso eu com nosso papel profissional.

De repente, a representação chega ao fim. Cansados, estamos sós, com o dia todo livre, para uma conversa tão íntima que não admite interlocutor.

Se não temos um eu, bem estruturado e independente do papel que desempenhamos, a aposentadoria pode ter o gosto amargo de nosso próprio velório, ao qual, já profissionalmente invisíveis, somos obrigados a assistir calados. Não é sem razão que muitos fazem como os imperadores, só deixam o cargo que ocupam quando morrem de fato.

A maioria das pessoas que nos rodeia é de pouca ajuda nessa hora. Olham para nós como se fôssemos um espírito desencarnado e nos perguntam: "Então, como está se sentindo?". A verdade é que essa maioria não nos conhecia. Antes, conhecia o papel que representávamos e que eles temiam ou admiravam.

Os amigos de infância e de adolescência são especiais, pela boa razão de que lá não representávamos nenhum papel, simplesmente éramos nós por inteiro e só por isso éramos amados.

O tempo passou, os cabelos estão brancos, o corpo espelha a jornada, a espontaneidade da infância ficou pelo caminho. Apesar das mudanças, a vida insiste em nos oferecer mais tempo para a busca do bem supremo, a felicidade. Alguns dizem que nunca a encontraremos, pois ela seria não um lugar, mas o próprio caminho.

Aposentados ilustres vêm ao nosso encontro. Agnes Repplier nos saúda com um conselho: "Não é fácil encontrar a felicidade em nós mesmos e é impossível encontrá-la em outro lugar".

Fernando Pessoa diz se chamar Ricardo Reis e nos recita versos:

"Ah, não consegues contra o adverso muito; Criar mais que propósitos frustrados! Abdica e sê Rei de ti mesmo."

Sophya Breyner, com um sorriso nos lábios, nos dá boas-vindas ao real: "O passado se rende; o presente o devora".

São tantos, aposentados imortais, que nos conhecem tão bem sem nunca nos terem visto, que sorrimos felizes.

Libertos dos compromissos e obrigações inerentes ao papel que desempenhamos, leves e soltos nos entregamos a um novo tempo. Um tempo de criar, de fazer, sobretudo de ser, não por obrigação, mas pelo puro prazer de estar vivo e reencontrar a espontaneidade que foi dádiva perdida, mas que agora é conquista. Cessa o papel que representávamos, resta a vida, simples, sem mistificações.

Oriovisto Guimarães, membro da Academia Paranaense de Letras, foi presidente do grupo Positivo por 40 anos.

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