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| Foto: Joe Parks/Wikimedia Commons

O deserto da região fronteiriça do sudoeste dos EUA é uma armadilha mortal para os migrantes: no verão, a temperatura passa dos 46 °C e, no inverno, fica abaixo de zero. A água é escassa; sombra, então, quase inexistente.

Cerca de oito mil pessoas já morreram nessa área, desde os anos 1990, tentando entrar no país. Seus sapatos, garrafas de água vazias e rosários abandonados pontilham a paisagem.

Ao longo do ano inteiro, voluntários da nossa organização, a No More Deaths/No Más Muertes, percorrem as trilhas mais remotas do Deserto de Sonora, no trecho do Arizona, que se estende também pela Califórnia e noroeste do México, para deixar água, comida, cobertores e outros itens de necessidade básica ao longo dos principais corredores migratórios.

Só que o governo federal está tentando criminalizar nossa ajuda humanitária.

Documento não é pré-requisito para gentileza. Todo ser humano tem direito ao alimento, à água e à circulação segura

Onze meses atrás, um voluntário que já trabalhava conosco havia muito tempo, Scott Warren, foi detido na cidadezinha fronteiriça de Ajo, no Arizona, por ter fornecido comida, água e abrigo a duas pessoas sem documentação. Foi acusado de ocultar pessoas em situação ilegal e de conspiração de ocultação. Se condenado no julgamento que começa no mês que vem, no Tribunal Distrital Federal desta cidade, poderá pegar vinte anos de cadeia.

A acusação contra Warren faz parte de uma estratégia de longo prazo do governo para passar uma mensagem insidiosa: a assistência humanitária aos migrantes é crime. As autoridades já lançaram mão de todo tipo de manobra para processar os “bons samaritanos do deserto”, acusando nossos voluntários de crimes que vão desde ocultação e transporte de migrantes ilegais a infrações como o “abandono de propriedade pessoal” em um santuário natural (por espalharem estrategicamente galões de água para os estrangeiros) e uso de estradas restritas sem permissão.

Esses processos legais contra nossos integrantes são apenas um componente de um movimento mais amplo contra os estrangeiros sem documentação nos EUA. Ações como o uso de patrulheiros armados na fronteira, a separação das famílias e a retórica cada vez mais violenta da administração são peças de um conjunto de políticas cujo objetivo é transformar a travessia da fronteira em sentença de morte.

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Na última década, o número de vítimas aumentou mesmo quando as tentativas de cruzamento diminuíram, pois a militarização da área empurra os migrantes para as áreas desérticas mais remotas. É impossível levar água que baste mesmo para uma caminhada de dois ou três dias nos espaços mais ermos do Sonora. Sem ajuda, essas pessoas têm uma morte dolorosa e cruel – geralmente solitária, com delírios causados pela fadiga, a fome e a sede.

O governo conhece bem as condições letais ao longo da nossa fronteira meridional. Em 1994, a administração Clinton deu início à estratégia de “Prevenção por Meio da Dissuasão”, fechando pontos de entrada urbanos para o país e instituindo novos pontos de controle ao longo das rotas principais mais ao norte. Cidadezinhas fronteiriças ganharam infraestrutura militar, com sensores, cercas de arame farpado e um grande aumento no número de patrulheiros.

Os legisladores não se incomodaram em erguer um muro ao longo de toda a região divisória porque sabiam que partes do terreno já eram tão inóspitas que a maioria morreria tentando atravessá-las. O deserto se tornou uma arma, uma vastidão formidável que simplesmente engolia os mais ousados – ou desesperados.

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Antes de eu me mudar para o Arizona com o objetivo de participar da nossa iniciativa assistencial, não tinha ideia de quão implacável é o deserto. A primeira vez que saí em caminhada com outros voluntários para deixar suprimentos, fiquei abismada com a imensidão infinita do céu e da terra, mas logo comecei a ver cada parte da paisagem do ponto de vista da jornada do migrante: os arbustos cheios de espinhos, as criaturas venenosas e o silêncio opressor da amplitude vazia. Ajo, onde Warren foi detido, fica a 70 km da fronteira – um percurso longo demais para ser feito em condições tão adversas.

Aqueles que se opõem à imigração alegam que o fornecimento de água e ajuda encoraja os estrangeiros a fazer travessias perigosas (sem apresentar provas), mas sabemos que as pessoas vão continuar arriscando a vida para entrar nos EUA porque se sentem ameaçadas, inseguras, em seus países de origem. Ajuda humanitária é oferecer água para quem está desidratado e alimento para os famintos, independentemente de origem ou documentação.

Para continuarmos fazendo nosso trabalho, precisamos que as pessoas comecem a ligar para a sucursal da Procuradoria-Geral em Tucson e deixem bem claro que esse tipo de assistência não é crime. E, nos próximos dias e meses, pedimos à população que se envolva no movimento por santuários, pois não há um único local nos EUA que não tenha sido afetado pela crise fronteiriça. Há muitas formas de se engajar nesse trabalho localmente – desde a organização de petições para forçar as prefeituras a aprovar leis que estimulem a receptividade às comunidades migrantes até a adesão a esquadrões de mobilização de pronta reação contra deportações. Os grupos assistenciais deveriam poder agir sem se preocupar em ser assediados ou perseguidos pelo governo; seus membros deveriam ter acesso às terras públicas, contanto que permaneçam nos corredores ativos de migração.

Documento não é pré-requisito para gentileza. Todo ser humano tem direito ao alimento, à água e à circulação segura.

Justine Orlovsky-Schnitzler faz parte do grupo de defesa No More Deaths/No Más Muertes.
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