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Quando o Estado decide até sobre os banheiros das igrejas, não há autonomia religiosa

Em termos práticos, a decisão mineira envia um recado claro às religiões e igrejas: a autonomia de vocês é provisória; os rituais, condicionáveis; a doutrina, negociável; e a placa do banheiro, assunto de Estado. (Foto: Mateus Campos Felipe/Unsplash )

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Enquanto o Brasil desmorona em suas bases morais, institucionais e espirituais, alguns agentes seculares seguem exercendo seu sacerdócio invertido, no qual qualquer vestígio de bom senso vira heresia, a moral religiosa se torna pecado e a autonomia das confissões é sacrificada no altar da ideologia do momento. Foi o que vimos mais uma vez com a recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que suspendeu a eficácia de uma lei municipal de Belo Horizonte que ousava – vejam só o “crime” – garantir às instituições religiosas e igrejas o direito de organizar os banheiros de seus templos conforme o sexo biológico.

A vereadora Flávia Borja, em um raro exemplo de coragem legislativa em tempos de covardia normativa, havia proposto uma lei que – pasmem – limitava-se a afirmar o óbvio: cada confissão religiosa ou igreja tem o direito de organizar seus espaços de uso comum conforme suas crenças, inclusive quanto à separação de banheiros por sexo biológico. A mesma prerrogativa se estendia a escolas religiosas e demais instituições confessionais.

Um Estado verdadeiramente laico protege as convicções que não professa; garante os ritos que não celebra; respeita as placas de porta que não colocaria na sua repartição. O pluralismo só é honesto quando suporta a diferença que nos desagrada

Vamos deixar isso claro: não estamos falando de prédios públicos, nem de repartições estatais ou escolas do governo. Estamos falando de banheiros em igrejas, sinagogas, mesquitas, terreiros, espaços de culto. Locais sacralizados pela fé, regidos por doutrinas que, como qualquer cidadão atento pode deduzir, têm normas próprias de conduta, separação de espaços e organização da convivência. Pois bem: nem isso escapa mais à sanha inquisitorial de segmentos da sociedade tomados por ativismo ideológico.

Na obstinação de uniformizar compulsoriamente todas as instituições sociais segundo sua própria cartilha de valores, uma determinada associação civil ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade alegando que a lei municipal fomenta a intolerância e discrimina ao “impor uma visão hegemônica sobre gênero, pregando a ideologia de existência apenas da cisgeneridade”.

Qual foi a resposta do TJMG? Uma decisão liminar do relator, prontamente referendada por seus pares no Órgão Especial, suspendeu a lei. Motivo? Além de entender que a matéria não se inseria na competência legislativa do município, a norma era, segundo seus doutíssimos argumentos, “discriminatória e excludente”.

Essa retórica é velha. A fórmula está pronta. A semântica é sabidamente nebulosa, abstrata, vazia de substância e cheia de palavras com maiúscula ideológica: “Igualdade”, “Acolhimento”, “Inclusão”. Toda essa imposição é, é claro, à custa da exclusão da visão religiosa, até mesmo dentro de seus próprios recintos, em afronta direta ao que assegura a Constituição Federal, artigo 5º, inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

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Ou seja: o Estado brasileiro reconhece o óbvio: templos não são meros edifícios – são expressões vivas de um modo de vida espiritual, com linguagem e regras próprias e, sim, sanitários próprios, se assim decidirem. Os espaços confessionais são regidos por convicções metafísicas, regras de decoro, códigos simbólicos e uma disciplina interna de culto. O banheiro, numa igreja ou espaço confessional, não é um objeto neutro: ele participa da gramática moral do espaço sagrado, do cuidado pastoral com crianças e mulheres, da simbologia de pudor e separação que muitas tradições professam. Reduzir tudo isso a “banheiro é só um banheiro” é não compreender o que é um âmbito religioso.

A decisão do TJMG, portanto, ao desconsiderar esse fundamento constitucional, comete uma dupla violência: contra o texto da Carta Magna e contra a própria realidade ontológica das religiões. Quem conhece minimamente o funcionamento interno de confissões religiosas sabe que a separação entre homens e mulheres em espaços específicos é um elemento litúrgico, simbólico e disciplinar – e não uma trivialidade arquitetônica. Se amanhã os tribunais resolverem que os ritos do catolicismo são discriminatórios por não ordenarem mulheres, as igrejas deverão então ordenar bispas? Chamar isso de “discriminação” é confundir organização interna com exclusão.

A competência federativa é outro ponto mal resolvido. A lei municipal não alterava o Código Civil, não mexia no conceito jurídico de “sexo” para fins gerais, tampouco criava deveres para a rede pública laica. Limitava-se a reconhecer – no espaço onde a liberdade religiosa tem densidade máxima – um modo de organização coerente com a moral própria dessas entidades. Se a União dita as diretrizes nacionais sobre direitos civis, isso não autoriza concluir que o município não possa, ao regular posturas, atividades e usos em seu território, reconhecer prerrogativas domiciliares e confessionais em matéria de higiene, segurança e uso de dependências. O que o município fez não foi legislar “sobre identidade”; foi dizer ao poder de polícia urbana: nos limites destas casas de culto, há um estatuto de autonomia que merece deferência.

Em termos práticos, a decisão mineira envia um recado claro às religiões e igrejas: a autonomia de vocês é provisória; os rituais, condicionáveis; a doutrina, negociável; e a placa do banheiro, assunto de Estado. O passo seguinte é previsível: discutem-se o sermão, o currículo catequético, a indumentária litúrgica, o estatuto associativo – sempre invocando uma agenda moral volátil à qual todos devem curvar-se. A laicidade, como estamos vendo, deixa de ser um limite ao Estado para tornar-se pretexto de intromissão.

A decisão não encerra o caso. É liminar; haverá julgamento de mérito. Até lá, vale lembrar que um Estado verdadeiramente laico protege as convicções que não professa; garante os ritos que não celebra; respeita as placas de porta que não colocaria na sua repartição. O pluralismo só é honesto quando suporta a diferença que nos desagrada. A mais opressora das tiranias é a que se instala no nome do bem. Se até as dependências mais elementares de um templo forem arrastadas à mesa da homogeneização, nada restará de autonomia religiosa além do nome.

André Fagundes é doutorando em Direito Público e mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É também professor na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR, pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (CEDIRE) e jurista aliado da Alliance Defending Freedom (ADF International).

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