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A saúde é direito fundamental, essencial à promoção e proteção da vida, além de pressuposto da dignidade da pessoa humana, merecendo, por isso, ser incansavelmente protegido, respeitado e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. Aliás, em virtude de sua fundamentalidade para o bem-estar individual e o afeto à coletividade, reconheceu-se expressamente na ordem constitucional a relevância pública das ações e serviços de saúde (artigo 197 da Constituição Federal).

Contudo, apesar desse valioso status, constata-se que a afirmação quantitativa e qualitativa de questões sanitárias ainda se constitui grande reivindicação da sociedade, resultante, por exemplo, da insatisfação no agendamento e realização de consultas, exames especializados e procedimentos cirúrgicos, da ausência de adequado fornecimento de assistência farmacêutica, disponibilização de leitos hospitalares, oferta de serviços no campo da saúde mental e assim por diante.

A esse contexto, merece somar-se o cenário de crise econômica no qual o país se encontra imerso, o que tem acarretado a migração da saúde privada para a pública – infelizmente, mais por necessidade que por desejo –, justificando que se procure pensar e apresentar soluções ao setor de saúde mais próximas possíveis da realidade social.

O enfrentamento desses negativos efeitos passa por contínuos e eficientes atos de gestão, prestação e regulação do direito à saúde, de maneira a assegurar, sem retrocessos, a progressiva formulação e implementação de políticas públicas a ele alusivas. Também passa pelo aumento do sentimento de pertencimento de parcela maior da população em torno das ações e serviços públicos de saúde que estão à sua disposição através do SUS, e pela indispensável valorização do papel desempenhado pelos trabalhadores da saúde. Além disso, ainda transita pelo correto financiamento das atividades sanitárias, diante da necessidade do repasse e aplicação de recursos para custear as despesas decorrentes.

Nesse cenário despontam interesses de diversas ordens, mais preocupados, quando muito, em amenizar ou resolver os efeitos a partir da prevalência do “ter” sobre o “ser”, do predomínio do valor econômico em relação à saúde e à vida das pessoas. Dessa forma, a solução para as múltiplas causas que acarretam insatisfações e a não resolutividade no campo da saúde fica para segundo plano, crescentemente dificultando que sejam resolvidas, abrindo espaço para a terceirização e o avanço da iniciativa privada sobre a saúde, em detrimento da rede própria e pública de saúde.

Haveria maior presunção de correção e legitimidade caso as deliberações fossem tomadas após garantir-se participação popular

O sistema de saúde, concebido para ser universal, igualitário e gratuito, sofre constantes ameaças de que seus respectivos conteúdos axiológicos sejam restringidos, muitas vezes por aqueles que possuem o dever institucional de bem conhecê-los e aplicá-los. As regras norteadoras do direito fundamental à saúde, editadas através do exercício da democracia representativa, por sua vez e em diversas situações, em vez de garantir a promoção das conquistas sanitárias reconhecidas na ordem constitucional, contribuem no sentido de gerar performance disfuncional ao sistema concebido para operacionalizá-lo. Ademais, muitas políticas públicas deixam de ser executadas ou o são de forma empobrecida.

Como, então, possibilitar que o direito à saúde, na agenda das funções legislativa, executiva e jurisdicional do Estado, seja melhor apreciado e tutelado? Qual é o direito à saúde, em extensão e profundidade, que se pretende ver garantido pelas instituições? Quais políticas públicas necessitam ser observadas no campo sanitário? Em que medida deve ocorrer o financiamento da saúde?

Sabiamente, o constituinte de 1988, em período no qual inclusive se buscava a afirmação da redemocratização do país, apontou o caminho a ser seguido para que as respostas a essas questões sejam com maior intensidade legítimas e correspondentes à realidade social em vigor, qual seja: através da “participação da comunidade” (artigo 198, III).

Não obstante os méritos que existem na democracia representativa, diariamente tem-se notícia de que alguns de nossos representantes deixam de atuar em sintonia com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Esse indicativo demonstra que tal espécie de democracia não é suficiente o bastante para garantir rica abordagem a direitos fundamentais. A ausência de maior debate, de tratamento da questão que envolva direitos fundamentais com o povo – o principal interessado –, tem condições de, na balança entre a edição da norma e a prestação do serviço atinente ao direito, gerar incompletudes e ineficácia social.

Dessa forma, e considerando que o próprio desenho constitucional explicitamente assegurou espaço para que a participação popular – dos cidadãos, movimentos e organizações sociais – subsidie, oriente e forneça os elementos ou parâmetros da atuação estatal, não mais se mostra recomendável que o Estado atue unilateralmente, sem diálogo e alheio à convergência que precisa buscar com o querer social.

A democracia participativa, em essência, deriva de resultado do processo democrático e pressuposto indispensável à sua consolidação. Atualmente, apresentam-se como exemplos de participação democrática o referendo popular de leis ou atos normativos aprovados pelo Legislativo e submetidos à apreciação da vontade popular (artigo 14, II da Constituição), a iniciativa popular para a apresentação de projetos de lei ao Legislativo (artigos 14, III e 61, §2.º, ambos da Constituição), o plebiscito utilizado no intuito de deliberar previamente sobre determinada circunstância política (artigo 14, I da Constituição), além dos conselhos e conferências existentes em áreas consideradas como de relevância pública, como a saúde, meio ambiente, educação e assistência social. Em idêntico sentido, não se pode descurar dos novos mecanismos de tecnologia que estão a surgir, capazes de possibilitar a consulta popular via internet.

Por meio desses instrumentos, oportuniza-se ao povo concretamente participar, sair da ausência e de posição secundária e tornar-se presente e proativo, legitimando, com maior ênfase, a tomada de posições no âmbito judicial, legislativo e executivo, possibilitando que a deliberação resultante se ajuste à complexidade do mundo moderno, em contínua transformação.

Por isso que, exemplificativamente, ao se procurar instituir novo regime fiscal a partir de emenda à Constituição que se mostra capaz de afetar o direito fundamental à saúde, no mínimo haveria maior presunção de correção e legitimidade caso a deliberação a respeito fosse tomada após garantir-se participação popular. Em idêntico sentido, na análise de demanda judicial que envolva discussão sobre o direito à saúde, possuindo como objeto medicamentos especializados (de alto custo e destinados ao tratamento de doenças raras), é de todo recomendável procurar verificar qual a compreensão do povo sobre integralidade das ações e serviços de saúde, o que pode ocorrer após a realização de audiência pública, tal como já fez o STF em ocasião passada.

Portanto, o respeito à participação popular, em sede do direito fundamental à saúde, permite que o proceder das instituições encarregadas de legislar, julgar e executar questões atreladas às ações e serviços de saúde guarde maior legitimidade e eficácia, evitando que resulte restringido imoral, ilegal e inconstitucionalmente.

Marcelo Paulo Maggio, mestre em Direito e doutorando em Saúde Pública, é promotor de Justiça e professor da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (Fempar).
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