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Imagem ilustrativa.| Foto: Felipe Sampaio/STF

Não é a primeira vez que medidas cautelares são impostas a acusados, proibindo-os de se comunicarem entre si, para que não combinem versões no curso de investigações ou de processos, como essa ora imposta aos suspeitos de orquestrarem o suposto golpe de Estado sob investigação. O crime investigado é gravíssimo, disso não há dúvida, mas não podemos esquecer, por outro lado, que estamos num Estado Democrático de Direito, sob a égide de uma Constituição Federal republicana, que tem como vetores a dignidade da pessoa humana e os princípios da legalidade e da eficiência.

Parece paradoxal invocar direitos e garantias fundamentais para proteger justamente quem atenta contra esses mesmos direitos e garantias, no entanto, o sistema jurídico tem de ser eficaz e soberano, tem que estar acima das forças que tentam romper com a sua higidez. Nosso sistema jurídico é moderno, não devendo valer-se de instrumentos jurídicos obsoletos e comprovadamente ineficazes, além de desumanos em diversas situações.

Em 2005, o Supremo Tribunal Federal julgava caso paradigmático a esse respeito, sobre se seria legal ou ilegal a prisão preventiva decretada por conta de conversas interceptadas entre dois acusados, membros da mesma família, a respeito da investigação em andamento (habeas corpus n. 86.864-MC). A matéria não chegou a ser decidida por questões de ordem técnica. No entanto, o dilema ainda nos rodeia.

O que é exercer defesa senão justamente opor-se à acusação? Não há nada de ilícito em alinhar o que cada acusado dirá em seu interrogatório, afinal, às vezes, evitar temas polêmicos no curso de uma investigação ou de um processo, ou dividir as falas, pode ser uma importante estratégia de exposição dos fatos ou de apresentação de justificativas.

Vamos lembrar que o interrogatório é um ato processual de defesa, tanto assim que, a partir de reforma do Código de Processo Penal de 2008, foi passado para o último momento da instrução processual, justamente para dar a oportunidade de o acusado tomar conhecimento de todo o material probatório produzido, de forma que consiga defender-se amplamente.

A nossa Constituição Federal não deixa nenhuma dúvida, em seu artigo 5º, inciso LV, sobre as balizas do direito de defesa: “aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Ou seja, mais do que assegurar o direito de defesa, nossa Carta da República vai além e estabelece que esse direito deve ser amplo e é assegurado aos acusados em geral, ou seja, a todo e qualquer acusado.

Ao contrário do que se pensa, o interrogatório não busca a confissão do acusado, elemento de prova que nem é o mais importante do processo, tanto assim que, desde a década de 40 do século passado, o artigo 197 do Código de Processo Penal estabelece que “O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”.

Aquele que confessa pode estar mentindo e, se estiver, nunca se esclarecerá “o fato e suas circunstâncias” como determina o artigo 6º, inciso III, do nosso Código de Processo Penal. Em outras palavras, confissão não é prova, mas um ato processual tão antigo, tão obsoleto, que foi embora, enquanto prova, junto com os regimes absolutistas, quando tiveram fim os rituais de suplício em praças públicas.

Não faz sentido nos dias de hoje privar os acusados de se defenderem, cerceando o direito, se assim entenderem por bem, de combinarem os depoimentos. Afinal, o juiz formará a sua convicção, não pela confissão, mas pela “livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial”, segundo o artigo 155 do Código de Processo Penal.

Proibir os acusados de se defenderem amplamente como quer a nossa Constituição, privando-os de falarem entre si, somente pode ser entendido como um constrangimento imposto, algo como uma pena de banimento, resposta penal essa antiquada, que não existe mais nos regimes modernos. Para se ter uma ideia, Mandela sofreu pena de banimento do então governo sul-africano, durante o apartheid, para que não falasse com os demais membros de seu grupo. Era uma forma de tentar enfraquecer a luta contra o apartheid.

Se os investigados querem conversar sobre o processo, se querem decidir a estratégia, que o façam; o que não se pode é coagir testemunhas, ou praticar ações ilegais, agindo contra a conveniência da instrução criminal. Agora, falar entre si, conversar sobre o processo ou sobre qualquer outro assunto, o nosso ordenamento jurídico não proíbe.

José Carlos Abissamra Filho é advogado criminalista, doutor e mestre pela PUCSP, ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). É autor do livro “Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais” (Juruá Editora).

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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