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Ao tornar meu roteiro por uma Curitiba do passado, lembro os ônibus da Companhia Força e Luz em seu circuito diário do Hospital Oswaldo Cruz ao Militar. O trajeto vindo pela Rua XV transpunha a Praça Osório e ingressava na Vicente Machado, gastando 20 minutos quando os veículos paravam mais 10 para o cumprimento do horário estabelecido.

Em janeiro de 1944, quando tenente convocado para a guerra, ao apanhar o transporte na Praça Osório, um sargento me surpreendeu ao deixar o assento da frente para se acomodar no último banco. Coisas da disciplina militar que aprendíamos na Formação Sanitária, sediada na Sociedade Handwerker.

Éramos doze doutorandos comandados pelo capitão Aristides Athayde. Um estágio maravilhoso, que nos pagava um conto e cem mensais para jogar palitos no cassino dos oficiais. Foi o primeiro e mais fácil dinheiro da minha vida, com direito a apresentação de armas pelo sentinela de serviço.

O tempo era de beligerância e o Handwerker estava desapropriado para fins militares, o mesmo acontecendo com o Sengerbund, que passou a Concórdia; o Teuto, que se chamou Jahn e o Junak, que se tornou Juventus.

A 5.ª Região Militar era comandada pelo general Meira de Vasconcelos e os diretores das sociedades sob intervenção eram presididas pelos capitães Emanoel de Moraes ou Adacto de Mello. Mais tarde, quando morava em Castro, este militar por lá apareceu em missão dos Correios. Houve uma recepção à qual não compareci por falta de interesse em revê-lo. Mesmo porque, certa feita, na saída do quartel, me chamou. Apresentei-me, fiz a devida continência e baixei a mão. Ele me repreendeu com a observação de que não podia baixar a mão sem o seu consentimento. Repeti a saudação, ficando como estátua diante de suas bochechas de moreno forte. No segundo ano do CPOR, já aprovado pelas notas, ele me atribuiu 30 faltas, determinando a perda do curso.

Curitiba, na época, era palco de brigas de rua a cargo do Carlinhos Pereira, do Edmir Rocha Loures, do Ademar Buquera e do Paulo Novaes, que se confrontavam entre si ou iam desafiar o João Cachorro, um homem negro de dois metros de altura, leão de chácara do Cassino Ahú. Quem quisesse tirar carta de valente havia de passar pelo gigante de ébano antes de fazer alarde na Rua XV.

Durante a ditadura de Vargas, a cidade se engalanava para as comemorações da Semana da Pátria. Era um farto elenco de solenidades, destacando-se os desfiles estudantis e militares que apinhavam a Rua XV, da Barão do Rio Branco à Avenida Cel. Luiz Xavier, onde se erguia o palanque das autoridades: o governador Manoel Ribas, o general Manoel Rebelo e os secretários Fernando Flores e João de Oliveira Franco. O desfile do 9.º Regimento de Artilharia, onde hoje é o Shopping Curitiba, era o mais atraente, com seus canhões arrastados por muares que deixavam rastros de esterco à sua passagem.

Dessas comemorações participei desfilando como soldado do terceiro pelotão do Tiro Rio Branco, em 1937, e, anos depois, como aluno do CPOR, guardando o altar da pátria na Praça Tiradentes. Defronte o palanque recebíamos a ordem de "olhar à direita" para admirar seus ocupantes.

Havia na Osório, perto da Voluntários da Pátria, um coreto onde a Banda da Polícia Militar, sob a batuta do maestro Romualdo Suriani fazia retretas nas noites quentes de domingo. Tal monumento foi retirado por algum prefeito, coisa que jamais faria o Rafael Greca de Macedo, que muito ornamentou a capital.

Durante o período de férias na faculdade eu era um notívago contumaz. Perambulava pela Rua XV, erma e despovoada, em conversas com meu colega Bartolomeu Bartolomei que, mais tarde, seria o ortopedista do Pelé. E ao avançar das madrugadas apreciávamos a faina dos garis, com suas imensas vassouras, a removerem de noite o lixo de todos os dias. Essa recordação tanto me enleva quanto me entristece. Na realidade, foi algo que passou célere para a eternidade. Quanto conversávamos e sonhávamos naquela quadra da existência, ao convívio dos mesmos bancos acadêmicos e mestres do ensino universitário!

Lembro a Rua Ratclif, prejudicada na sua segunda quadra pelos fundos do quartel do l5.º B. C. e soturna durante a noite, ao concentrar sob a copa de suas árvores o baixo meretrício da capital. Houvesse assaltos naquela época, seria o local mais adequado. Hoje é a movimentada Desembargador Westhfalen.

Na Rua XV, onde tudo acontecia, os guardas civis, nos cruzamentos, ordenavam o trânsito com seus ágeis cassetetes brancos. Os semáforos, que o Rio inaugurou em 1930, chegaram em Curitiba só na década seguinte.

No sexto andar do Edifício Garcez funcionava o Cassino Estância das Mercês, ao qual, por ser "de menor", nunca tive acesso. Anos depois, no período acadêmico, freqüentei o Ahú. Nele vi o Sílvio Caldas perder uma fortuna na roleta antes de ir para o palco cantar "Faceira". Os maiores nomes do cancioneiro popular aqui estiveram, inclusive o Francisco Alves, que, barrado no portão do Hipódromo do Guabirotuba, ingressou com a minha ajuda de cronista. A entrada no Jóquei custava 5 mil réis. O "rei da voz" permaneceu longo tempo em Curitiba, com shows no cassino, aparecendo na Charutaria Jockey, sempre alegre e cantarolando. Aficionado do esporte das rédeas, comparecia todos os domingos às carreiras, ganhando ou perdendo, nunca empatando.

Lauro Grein Filho é presidente da Cruz Vermelha e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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