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O que vai acontecer com as edificações industriais do Rebouças, aí incluída a recente discussão sobre a Matte Leão, é a descaracterização de uma das regiões mais mar­­cantes da cidade

Entre os espaços que uma cidade gera para se estabelecer e afirmar, aqueles que resultam dos processos físicos de geração de riquezas – digamos assim, os meios de produção – estão entre os mais interessantes e importantes. Desde os relacionados com a extração de matérias-primas – galpões de depósito e processamento, edifícios de manufatura ou produção industrial – até os equipamentos e instalações de transporte, todos os recursos do engenho humano que resultaram na nossa civilização contemporânea, no que ela tenha de confortável ou de insuportável.

As minas de carvão inglesas são um dos capítulos mais horrendos da História da Revolução Industrial – e o que atraem de visitantes pode ser encarado como um desagravo às suas vítimas. Nosso equivalente, menos dramático, são as minas de ouro escavadas entre Ouro Preto e Mariana, grutas artificiais que merecem ser vistas.

Pelo mundo inteiro, esses remanescentes de ciclos econômicos ultrapassados funcionam com outras atribuições diferentes das originais, em geral como equipamento cultural. Mas permanecem na memória da sociedade e da civilização ocidental. E são tantos e tão felizes os exemplos, quando o talento dos arquitetos está à altura do desafio, que menciono apenas um: pouco conhecido, mas simplesmente perfeito, a "Uzina Electrica dim Sibiu", encravada nos belos e gelados Cárpatos, Transilvânia Romena. Foi construída em 1896 e funciona desde então.

É possível fazer-se tão bom quanto, não melhor. Todo o equipamento original é mantido na mais perfeita ordem e funcionamento, produzindo uma pequena porcentagem da energia consumida na região. E, fato extraordinário, é mantida nesse estado pelos descendentes dos operários originais, que nela trabalharan há mais de um século...

Mas não é preciso ir tão longe nem expor o pescoço: o Brasil tem casos de preservação industrial muito bons, clássicos mesmo. O Sesc Pompeia, reciclado por Lina Bo Bardi, a Fábrica Brennand em Pernambuco, a Estação da Luz... e outros, infelizmente ainda poucos.

Mesmo nós, na nossa simplicidade provinciana, temos bons exemplos a apresentar: o Teatro do Paiol, o Centro de Criatividade do São Lourenço, as Indústrias Venske.

E esse é o ponto que interessa destacar aqui: com a falta de uma atitude firme em relação a esses edifícios de produção, nós perderemos a oportunidade de ter, além dos nossos referenciais, equipamento importante para a cidade. Perderemos nossos marcos, que nos dão a sensação de, pelo menos um pouco, sermos donos da cidade onde moramos.

O que vai acontecer com as edificações industriais do Rebouças, aí incluída a recente discussão sobre a Matte Leão, se insere nessa linha de preocupações: a descaracterização de uma das regiões mais marcantes da cidade, que se diluirá em uma quantidade enorme de investimentos com os quais lucra, como sempre, o próprio capital – nós, e Curitiba, só perderemos.

Vinculado à Paisagem Ferroviária da cidade, o bairro tem as marcas dos antigos zoneamentos, que se desfuncionalizaram. Não dá para afirmar muita coisa sobre o que deve permanecer e o que pode ser modificado ou mesmo substituído, sem um bom levantamento e diagnóstico do conjunto. Mas até que isso seja feito, convém cuidar bastante da concessão de alvarás de demolição e construção: a ansiedade do mercado por lucros grandes e rápidos pode causar danos irreparáveis.

E, evidentemente, de nada adianta fazer um diagnóstico se não for para configurar um plano para a área, sendo que a preservação do ponto de vista da paisagem é item primordial.

O Ippuc tem a autoridade, a competência e os meios para tanto. Mas por favor, em nome da respeitabilidade e do prestígio do órgão, sem essa de "Soho"! Quando ouço falar disso, lembro que há uns bons 80 anos já se falou numa "Petit Montparnasse" por aqui...

Key Imaguire Junior é professor aposentado de Arquitetura Brasileira da Universidade Federal do Paraná.

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