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Dante e a Divina Comédia de Domenico di Michelino | /Reprodução
Dante e a Divina Comédia de Domenico di Michelino| Foto: /Reprodução

O professor e economista francês Jean Fourastié, no livro Les conditions de l’esprit scientifique, afirmava que a história do progresso humano deveria ser complementada com uma história do esquecimento, pois junto com os avanços nós perdemos inúmeros conhecimentos valiosos. A leitura da Divina Comédia, a maior obra da literatura italiana – e, talvez, de todos os tempos – dá-nos a oportunidade de recuperar, de alguma forma, um desses conhecimentos de extraordinária fecundidade educativa: trata-se de uma técnica interpretativa hoje praticamente ignorada, mas que era lugar comum entre estudiosos desde a Antiguidade até o início dos tempos modernos. Sem leva-la em conta, nossa possibilidade de compreender diversos clássicos da literatura universal é praticamente nula.

A Divina Comédia é a história de uma viagem, de um itinerário educativo que permite à alma atingir as suas máximas possibilidades. Virgílio, um dos guias de Dante, claramente se comporta como um mestre, distribuindo ordens, conselhos e repreensões, às quais Dante obedece pronta e docilmente. A orientação do percurso de Dante em direção ao alto simboliza o caráter de escalada espiritual em direção à “luz intelectual, plena de amor”, a cuja contemplação Dante é levado pela amada Beatriz. Ela esclarece todas as suas dúvidas, e eleva a capacidade humana ao seu máximo desenvolvimento possível. Trata-se, portanto, de um ensinamento supremo, em que o leitor tem a oportunidade de aprender sobre uma inumerável quantidade de informações literárias, geográficas, astronômicas, filosóficas e teológicas, integradas no exemplo concreto de um homem que procura ordenar a própria alma em vista da finalidade última da existência humana.

Mas nem sempre os ensinamentos são explícitos. Dante, no canto IX do Inferno, adverte o leitor sobre a doutrina que está oculta sob o véu da alegoria: “O voi ch’ avete gl’ intelletti sani,/Mirate la dottrina che s’asconde/Sotto il velame degli versi strani.” Quando, em outras obras, explica as próprias poesias, Dante deixa claro que o significado mais importante a ser transmitido vai muito além do sentido literal. Numa poesia em que são exaltados o sorriso e o olhar da sua amada, ele esclarece que ela é nada menos que a própria Sabedoria, que o seu sorriso são as suas persuasões e o seu olhar são as suas demonstrações. Quando menciona os céus, ele se refere às ciências: os sete primeiros céus correspondem às sete ciências ou artes liberais do Trivium (a Lua é a Gramática; Mercúrio, a Dialética; Vênus, a Retórica) e do Quadrivium (o Sol corresponde à Aritmética; Marte, à Música; Júpiter, à Geometria e Saturno à Astrologia). Estas ciências são a antessala e a preparação indispensável para a vida intelectual plena, que corresponde às três últimas esferas: o céu das estrelas fixas, que corresponde à Ciência Natural e à Metafísica; o Primo Móbile, que corresponde à Ciência Moral, e o Empíreo, ou céu imóvel que move os demais, que corresponde à Ciência Divina, ou Teologia.

A leitura e a escrita em vários níveis de significação foram praticadas durante muitos séculos

Esta técnica expressiva – em que é tão importante o que se oculta quanto o que se revela – tem sua origem na Antiguidade, tanto em Israel quanto no mundo greco-romano. O próprio Cristo falava em parábolas e contava seu significado espiritual apenas aos discípulos. Seguindo o seu exemplo, os padres da Igreja – como Santo Agostinho, São Gregório Magno e São Bernardo de Claraval – explicavam as Escrituras em profundidade, explorando significados que geralmente estavam organizados em quatro níveis: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. Um destes autores, o filósofo Ricardo de São Vítor, diz que “a letra cobre o espírito assim como a palha cobre o trigo. Cabe ao jumento alimentar-se da palha e ao homem alimentar-se do trigo. Aquele, portanto, que se utiliza da razão humana é como aquele que despreza a palha dos jumentos e se apressa em alimentar-se com o trigo do espírito. É útil que os mistérios sejam cobertos com o invólucro da letra, pois, conforme está escrito, “os sábios escondem a inteligência” (Prov. 10, 14). De fato, sob a cobertura da letra, oculta-se a inteligência espiritual.”

Santo Tomás de Aquino afirma que esta é a forma expressiva própria das Sagradas Escrituras, que transcendem toda ciência, pois numa mesma sentença, enquanto descrevem um fato, revelam um mistério. Dante explica que o primeiro, o sentido literal, é o que não vai além da letra; o alegórico é uma verdade oculta sob uma bela invenção: enquanto a letra diz que Orfeu amansava as feras com sua cítara, o sentido alegórico alude ao ensinamento do sábio, que encanta os corações e as mentes dos homens mais rudes. Já o terceiro sentido, o moral, é uma norma de conduta que se deduz do fato narrado. Dante, aqui, dá como exemplo a subida de Cristo no Monte Tabor, em que apenas três discípulos foram escolhidos; a norma que se deduz é que, para coisas que devem permanecer secretas, deve-se escolher pouca companhia. O último sentido, e o mais difícil de entender, é o anagógico, “acima dos sentidos” ou que eleva para o alto, e que se refere a realidades espirituais prefiguradas em fatos históricos, como a saída dos hebreus do Egito que, além de significar a libertação do povo, significa também a libertação da alma do pecado pela Pásqua (travessia) de Cristo, isto é, o seu sacrifício.

Do mesmo autor: Educação é outra história (publicado em 2 de agosto de 2018)

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Não apenas a Divina Comédia era lida levando em conta esta quádrupla significação. Outros escritores medievais, como Giovanni Boccaccio, advertem, no interior de suas obras, que há um sentido mais profundo inacessível ao leitor comum. Mas é principalmente na leitura das Escrituras que esta modalidade de leitura em vários níveis era exercitada. A vida de Jacó, Lia e Raquel – cuja família deu origem ao povo de Israel, de onde viria o Cristo – foi interpretada como uma prefiguração visível da escalada espiritual da alma em direção a Deus.

Para Ricardo de São Vítor, a alma, buscando a sabedoria – isto é, Raquel – é conduzida a exercitar previamente a virtude (Lia). Do conúbio da alma (Jacó) com a justiça (Lia) nascem os frutos da virtude (os filhos). Os filhos de Jacó e Lia são os afetos ordenados ou as virtudes, sendo que as precedentes são pré-requisitos para as seguintes, como numa escada os degraus inferiores são necessários para se atingir os superiores. Desta forma, a escada que Jacó vê em sonho, com os anjos subindo e descendo, seria o caminho preparado por Deus para a salvação da humanidade, por meio da formação da nação de Israel, que culminaria com o advento do Cristo.

O último fruto é a própria contemplação da sabedoria: Benjamin nasce quando morre Raquel, porque “quando a mente do homem é elevada acima de si mesma, ultrapassa todas as estreitezas da razão humana”, que “sucumbe diante daquela parte da mente que elevou-se acima de si e, transportada em êxtase, olha a luz da divindade”.

Paulo Cruz: Uma luz para a educação (publicado em 5 de abril de 2018)

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Quando Dante coloca Raquel como companheira de Beatriz na Divina Comédia, ele quer significar que a viagem de Dante é semelhante ao percurso da escada de Jacó para a ordenação da alma. Um homem desordenado não estaria apto a contemplar, como faz Dante, a ordem do universo; a refletir, como um espelho sem manchas, a luz da inteligência divina. Neste sentido, o percurso dantesco corresponde ao aperfeiçoamento indispensável das virtudes, que não é uma simples crença subjetiva ou um moralismo, mas um aperfeiçoamento necessário para a realização da perfeição humana. Só compreendemos este significado, na Divina Comédia, quando avançamos além da leitura em nível literal.

A leitura e a escrita em vários níveis de significação foram praticadas durante muitos séculos, num período que abarca o nascimento de várias literaturas nacionais e o surgimento de inúmeras obras-primas que marcaram a nossa civilização. Como é possível preparar os leitores, hoje, sem levar em conta essa ferramenta indispensável para a compreensão de inúmeros clássicos? A palavra inteligência significa “ler dentro”. Quem não “lê dentro” não pode dizer que compreendeu o texto que está em suas mãos, e infelizmente esta é a realidade mais comum mesmo entre os leitores de boa-vontade, entre aqueles que procuram se aperfeiçoar por meio da leitura dos clássicos. Precisamos resgatar esta capacidade quase perdida, e nada melhor do que a leitura da Divina Comédia para nos conduzir na viagem de recuperação deste valioso conhecimento esquecido.

Fausto Zamboni, doutor em Letras, é professor de Língua e Literatura Italiana na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e autor de Contra a escola: ensaio sobre literatura, ensino e educação liberal.
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