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A crença de que a doutrina liberal é contra todo tipo de regulação da empresa e do mercado é falsa. O liberalismo não é uma lei nem propriedade intelectual de um autor. É uma ideia dinâmica de como organizar a vida em sociedade

Os seres humanos carregam três marcas essencias: a imperfeição, a absoluta diferença individual e o egoísmo (no sentido de que todos defendem, legitimamente, seu próprio interesse). A sociedade nada mais é do que o desejo, quase escandaloso, de seres imperfeitos, diferentes e egoístas quererem viver juntos, em regime de cooperação e, se possível, em paz e segurança.

Para viabilizar a vida em sociedade, o homem conta com dois instrumentos: o Estado (que é o limite imposto do exterior, para censurar e punir o comportamento ilícito) e a moral (que é o limite imposto pelo próprio homem, a partir de seu interior, e que o impede de prejudicar o semelhante). Onde falha a moral, cresce a necessidade de Estado.

Se o ser humano fosse perfeito e bom, seria o Estado necessário apenas para prover bens de uso coletivo (a rodovia, a avenida urbana, a praça, a iluminação pública, o sistema de trânsito etc.) e os serviços para defender e proteger as pessoas de ameaças e riscos que superam a capacidade individual de resistência (agressões externas, segurança interna, catástrofes, epidemias, colapsos de suprimento).

Não sendo o homem perfeito, cabe ao Estado estabelecer os limites da ação individual, definir os crimes, aplicar penas e administrar a justiça (que nada mais é do que a maneira como as condutas são investigadas, apuradas, julgadas, sentenciadas e punidas). A conduta dos indivíduos se dá no espaço privado e no seio das organizações sociais inventadas pelo homem. A empresa é uma dessas organizações, cuja função é transformar fatores de produção em bens e serviços aptos para uso humano.

É por sua condição de "sistema" que a empresa situa-se na chamada "ordem técnico-científica", logo, não submetida a leis morais, mas a leis da ciência e do mercado. É precisamente por não se reger por leis morais que a empresa precisa ser limitada, do exterior, por uma ordem superior, a "ordem jurídico-política". Se a empresa fosse regida pela ordem da moral, nenhuma se dedicaria, por exemplo, a produzir bens nocivos ao homem, como cigarros e bebidas alcoólicas. Mas como a ordem jurídico-política autorizou, em lei, a produção desses bens nocivos, as empresas os produzem.

A crença de que a doutrina liberal é contra todo tipo de regulação da empresa e do mercado é falsa. O liberalismo não é uma lei nem propriedade intelectual de um autor. É uma ideia dinâmica de como organizar a vida em sociedade. O liberalismo de 1776, que fazia sentido para aquela época, quando o mundo não conhecia sequer a máquina a vapor, não é suficiente para o mundo atual e seu estágio tecnológico. Logo, Adam Smith não poderia ter tratado da empresa tal qual ela é hoje, nem mesmo da empresa industrial que Marx criticou em 1850. O liberalismo é, sim, contra um dado tipo de regulação que prejudica e não serve a bom propósito algum, a não ser o desejo de poder dos governantes.

Sem regulação e repressão não há civilização, e esta é o conjunto de proibições que a lei impõe e das interdições que a moral exige. A questão principal da civilização é como conciliar regulação e repressão com liberdades e direitos individuais. O liberalismo aceita regular e reprimir, desde que respeitada a vida, a liberdade, a propriedade e a segurança do indivíduo, inclusive contra o arbítrio do governo e do Estado.

Entretanto, a regulação não pode pretender anular aquilo que a lei não tem capacidade de fazê-lo. Isso é o que André Comte-Sponville chama de "angelismo". Um exemplo é a tentativa de impedir a inflação por decreto, como se uma norma jurídica pudesse revogar uma lei científica, a lei da oferta e procura. As intervenções para defender o consumidor, preservar a concorrência, garantir o direito de propriedade, impedir a exploração do trabalhador e preservar o meio ambiente são bem-vindas e necessárias, e por uma razão: a empresa é uma instituição da ordem técnico-científica não regida por leis morais. Na ausência da moral... o Estado, a lei.

Assim, é ridículo falar em "ética empresarial" (na definição de Pascal de que "ridículo é a confusão das ordens"). Não existe uma ética "da" empresa. Existe, sim, ética "na" empresa. Ou seja, os homens é que são éticos ou não. A empresa, em si, é impessoal; é um sistema. Nunca ninguém viu uma empresa sentada no banco dos réus, diante de um juiz. Lá estará sempre um ser humano. Diz André Comte-Sponville, genial filósofo francês: "Um computador pode resolver um problema; só um homem pode tomar uma decisão. Um computador pode ser eficiente; só um homem pode ser responsável".

Sendo o homem imperfeito (muitas vezes, cruel e monstruoso), imaginar civilização sem regulação e sem repressão é ingenuidade, não liberalismo. Mas isso é tema para outro artigo.

José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.

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