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O jornalista Glenn Greenwald foi denunciado pelo MPF.
O jornalista Glenn Greenwald foi denunciado pelo MPF.| Foto: Lia de Paula/Agência Senado

Tempos difíceis. Sinais autoritários repercutem em diversas searas. Criminaliza-se a política. Acusa-se advogados. Despreza-se as instituições, como o Judiciário e o Legislativo. Enfim, reclama-se da democracia, e se esquece, assim, de todos os malefícios que a ditadura militar causou ao Brasil entre 1964 e 1985. Talvez essa malsinada situação derive do fato de que os jovens não suportaram diretamente os efeitos da ditadura, enquanto convivem com sucessivos escândalos de corrupção e crise econômica. A situação agrava-se quando alguns solitários membros do Ministério Público, apoiados por isolados juízes travestidos de super-heróis, atacam a liberdade de imprensa. O apogeu desse fenômeno foi a denúncia oferecida contra o jornalista Glenn Greenwald, mesmo não sendo investigado ou indiciado. Contudo, para entender e resistir a esses abusos, inclusive extirpá-lo em seu nascedouro, é indispensável resgatar os debates consumados na Assembleia Constituinte que redundou na Constituição democrática de 1988.

Por ocasião da Constituinte, o Brasil enfrentava série crise com suas instituições, a exemplo do que sucede atualmente. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estavam desacreditados por grande parcela da sociedade, razão pela qual o legislador optou por ampliar os poderes do Ministério Público. E fez bem. Nasceu, assim, uma instituição independente e permanente, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais disponíveis, segundo o artigo 127 da Constituição. Contudo, o legislador constituinte olvidou-se de estabelecer um controle externo para solucionar casos de abusos de membros do MP. E nem se diga que existe Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), uma vez que em sua composição prevalece a maioria de membros do próprio Ministério Público e suas decisões têm revelado um certo corporativismo.

A denúncia contra o jornalista Glenn Greenwald ofende a democracia

Nunca é demais relembrar que os políticos periodicamente se sujeitam ao sufrágio universal. As decisões judiciais são revisadas por tribunais superiores, sendo que para movimentar a máquina judiciária é indispensável o cidadão invocá-la, questionando seus direitos. Todavia, sob o discurso da independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade, inexiste limite para qualquer membro do Ministério Público oferecer ações midiáticas, inclusive denúncia contra jornalistas, afrontando o direito fundamental da liberdade de imprensa, consagrado no artigo 5.º, IX, de nossa Constituição Federal. É o caso da denúncia ofertada em desfavor do jornalista Glenn Greenwald. Talvez a Lei de Abuso de Autoridade, desde que devida e adequadamente concretizada pelos juízes, corrija esses de exageros.

Não se pode negar – ao contrário, deve-se aplaudir – os relevantes serviços que o Ministério Público tem prestado à sociedade na defesa dos direitos das minorias, do meio ambiente e, principalmente, no combate à corrupção. O que não se pode admitir é a ofensa ao direito fundamental de liberdade de expressão, bem como transmudar o combate à corrupção em um espetáculo midiático e sensacionalista.

O caso em análise revela manifesta ofensa às garantias constitucionais e à liberdade de imprensa, além de desrespeitar liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes que proibia “atos que visem à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald pela recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos da mídia”. Em verdade, presta um desserviço à sociedade, para dizer o mínimo. Trata-se de um péssimo exemplo. Afinal, concorde-se ou não, está em vigor uma liminar proferida por ministro do Supremo Tribunal Federal, regularmente investido em seu cargo público. Havendo discordância, restam tão somente os recursos previstos em lei. Inadmissível, portanto, o uso de subterfúgios, como instrumento de perseguição política e tentativa de restringir a liberdade de imprensa. Em síntese, a denúncia em questão ofende a democracia, razão pela qual é preciso denunciar e resistir a esse manifesto ato autoritário, sob pena de estimularmos um verdadeiro Estado ditatorial, ainda que por omissão.

Por outro lado, sejam ou não ilícitas as mensagens divulgadas pela equipe do The Intercept Brasil, há de se separar a prática de crimes cibernéticos (os quais devem ser punidos) do legítimo e regular trabalho jornalístico de divulgação de mensagens de interesse público. Aliás, se confirmada a veracidade das mensagens veiculadas pela mídia nacional e estrangeira, o Estado de Direito encontra-se ameaçado. As revelações são graves. Afinal, independentemente da identidade do acusado, qualquer cidadão tem direito a um julgamento imparcial, com observância do devido processo legal. As mensagens veiculadas revelam o inverso. Ou seja, reprovável entrosamento entre o órgão acusador e o juiz, o qual deveria – no mínimo – ser imparcial.

A sociedade, por enquanto, analisa e discute o caso a partir de um viés notadamente político, face a identidade dos envolvidos. Esquece-se, porém, de que amanhã algo semelhante pode ocorrer com cada um de nós. Disseminada a prática, basta um sujeito autoritário, investido de cargo no Ministério Público – às vezes com o auxílio obscuro de um magistrado –, para instaurar um procedimento criminal como instrumento de intimidação e perseguição. E assim se destroem reputações, famílias e empresas em casos em que eventual absolvição posterior não serve para reparar os danos irreversíveis causados.

É inegável a relevância do combate à corrupção. Contudo, não se pode mais admitir esse espetáculo midiático por intermédio de sujeitos autoritários que ignoram os direitos fundamentais e estabelecem fantasias em desfavor do acusado. E para tanto, os fatos são distorcidos para de qualquer modo condenar o acusado, conforme objetivo preliminar estabelecido. É preciso resistir. Desistir? Jamais. Ao fim e ao cabo a democracia e o Estado de Direito devem prevalecer. Sempre.

Carlos Alberto Farracha de Castro é advogado e doutor em Direito.

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