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O presidente da Rússia, Vladimir Putin
O presidente da Rússia, Vladimir Putin| Foto: EFE

A sucessão dos fatos e acontecimentos históricos tende a revelar um aprimoramento e uma evolução do homem, tanto no que diz respeito a suas virtudes e qualidades como no que concerne ao modo como aquele se relaciona com seu semelhante e com o mundo que o cerca. Entretanto, quando se imaginava que o homem havia atingido certo grau de sensatez e racionalidade, a comunidade internacional é impactada com um espetáculo dantesco, em que a barbárie passa a se sobrepor à convivência pacífica e ao entendimento diplomático que, supunha-se, deveriam imperar no relacionamento entre países civilizados.

Vladimir Putin, levando a extremos sua sanha autoritária e sustentando ser detentor de direitos históricos sobre a Ucrânia, promove no território desta uma inominável e abjeta intervenção militar que, certamente, significa um ponto de inflexão no desenvolvimento regular das relações internacionais, além de representar um enorme retrocesso nos incansáveis esforços que há décadas vêm sendo empreendidos pelos países e pelas organizações internacionais em prol da paz mundial. Há que se destacar, no episódio da ação armada contra a Ucrânia, dois aspectos de relevo que merecem algumas considerações: a consideração dos atos de violência perpetrados pela Rússia a partir de uma perspectiva jurídica do instituto da guerra; e o conjunto de ações ordenadas pelo presidente russo como claras violações do direito internacional.

No intuito de justificar a operação militar da Rússia em território ucraniano, Putin arrolou uma série de argumentos que se mostraram liminarmente inconsistentes e desprovidos de qualquer fundamento, como a alegação de que era necessário promover a “desnazificação” e a “desmilitarização” da Ucrânia, além das reiteradas declarações de que uma possível adesão da Ucrânia à Otan (aliança de defesa ocidental) poderia permitir a esta aproximar-se da fronteira com a Rússia. Agindo dessa forma, Putin nada mais fez que revelar uma conduta não raro usual na política internacional e que tem como inspiração a teoria realista das relações internacionais, cujos principais expoentes são o cientista político alemão Hans Morgenthau e o historiador britânico Edward Hallett Carr. Segundo essa teoria, o sistema internacional é destituído de um princípio organizador capaz de dirigir os conflitos, passando, assim, a ser um espaço de disputa pelo poder. Dessa forma, para garantir sua sobrevivência em um ambiente hostil, cada Estado está liberado a recorrer às guerras em busca da preservação de seu próprio interesse, ainda que para tanto tenha de desrespeitar acordos ou desobedecer a qualquer regra moral.

A guerra passa a ser, então, uma alternativa corriqueira entre os países, o que vem corroborar a célebre frase “a guerra é a continuação da política por outros meios”, de Carl von Clausewitz. Cumpre notar que o direito internacional, na busca incessante de promoção da paz, sempre preocupou-se em estabelecer um arcabouço institucional e normativo voltado para a regulação da guerra, principiando com um conjunto de normas aplicáveis aos aspectos técnicos do conflito armado, compreendidas nas Convenções da Haia de 1907, até evoluir para o que hoje conhecemos como direito internacional humanitário, que decorre das Convenções de Genebra de 1864 e de 1949, documentos estes consagrados essencialmente à proteção dos civis em tempo de guerra, bem como dos feridos e enfermos nos campos de batalha, e ao tratamento devido aos prisioneiros de guerra. Cabe lembrar ainda que, por força do Pacto de Paris, de 1928, os Estados passavam a condenar a guerra e a ela renunciavam; após quase 20 anos, a Carta da ONU, de 1945, acabaria por ditar a proscrição da guerra, conforme se vê no artigo 2.º, parágrafo 4.º: “Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”.

Embora o direito internacional moderno considere a guerra um ato ilícito, forçoso é reconhecer que o uso da força pelos Estados ainda resta como uma possibilidade fática, como evidenciam os atos de violência desmedida praticados pelas tropas russas contra a Ucrânia e seu povo. Contudo, do ponto de vista do direito internacional, não há dúvida de que a ação militar levada a efeito pelo Estado russo violou a legislação internacional, configurando, de início, um ato de agressão contra a soberania e a integridade territorial do Estado ucraniano, nos termos do artigo 1.º da Resolução 3.314, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1974. Do mesmo modo,

as cenas horrendas de massacres indiscriminados e intencionais da população civil e de ataques deliberados contra escolas e hospitais criam as condições necessárias a uma investigação minuciosa e profunda sobre a prática de crimes de guerra, caracterizados por violações graves das Convenções de Genebra de 1949, conforme dispõe o artigo 8.º, inciso 2, alínea “a”, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Nesse sentido, há de se louvar o trabalho desenvolvido por esse tribunal, juntamente com Ucrânia, União Europeia e Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no sentido do aprofundamento dessas investigações.

Convém ressaltar que o Tribunal Penal Internacional tem competência para processar e julgar pessoas, indivíduos, que tenham cometido os crimes previstos no Estatuto da Corte. Porém, não se pode descurar do fato de que não apenas os indivíduos (no caso presente, o presidente russo e os oficiais por ele comandados) poderiam ter cometido crimes de guerra, mas também é de se considerar que o próprio Estado russo, desde o início da ofensiva militar desencadeada contra o Estado ucraniano, infringiu princípios de direito internacional e tratados, tais como a soberania e a integridade territorial do Estado. A expectativa é de que a solução das dissensões e dos conflitos sempre se dê sob o primado do direito, cabendo aqui a seguinte exortação contida no Ato Constitutivo da Unesco: “As guerras nascem no espírito dos homens, e é nele, primeiramente, que devem ser erguidas as defesas da paz.”

Afonso Grisi Neto é mestre em Direito, doutor em Ciências Sociais e procurador federal.

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