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Rx Kids: quando gasto social na gestação se torna investimento rentável

Rx Kids representa mais do que um programa local bem-sucedido – é modelo para repensar o papel do Estado na economia moderna. (Foto: Sylwia Bartyzel/Unsplash )

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Em 2022, a cidade de Flint, Michigan, lançou um experimento social ousado que está mudando a forma como pensamos sobre políticas públicas. O programa Rx Kids oferece US$ 1.500 em dinheiro para mulheres grávidas durante a gestação, seguido de US$ 500 mensais pelos primeiros seis a 12 meses de vida do bebê, totalizando até US$ 7.500 por família. Não há burocracia complexa nem condicionalidades: basta enviar uma cópia do ultrassom e do documento de identidade para receber os pagamentos.

O programa alcançou quase 100% das mães elegíveis em uma cidade onde 59% das crianças vivem na pobreza – mais de três vezes a média nacional. Mais de 2.500 famílias já foram beneficiadas, com o programa distribuindo US$ 7,5 milhões até 2025. Esta iniciativa, resultado de parceria entre universidades locais, organizações filantrópicas e governo municipal, representa o primeiro programa nacional de assistência financeira pré-natal e infantil totalmente incondicional dos Estados Unidos.

Intervenções preventivas são simultaneamente as mais eficazes e as mais difíceis de justificar politicamente. É mais fácil aprovar orçamentos para tratar problemas existentes do que os prevenir, mesmo quando a prevenção custa uma fração do tratamento

Os resultados iniciais estão reescrevendo a narrativa sobre políticas sociais. Por décadas, o debate tem sido aprisionado em uma falsa dicotomia: de um lado, defensores da assistência social argumentam pela necessidade moral de apoiar os vulneráveis; do outro, críticos alertam sobre custos fiscais insustentáveis e dependência governamental. Flint prova que esta divisão é artificial. Os números são inequívocos: os US$ 5,8 milhões investidos no programa geraram US$ 6,2 milhões em economias diretas na área de saúde, prevenindo 42 nascimentos prematuros e 68 internações em UTI neonatal. Cada dólar investido retornou US$ 1,60 à economia local. Este não é assistencialismo – é um negócio lucrativo para a sociedade.

A linguagem importa na formulação de políticas públicas. Quando chamamos transferências de renda de “gastos”, implicitamente sugerimos desperdício. Quando as classificamos como “investimentos”, reconhecemos seu potencial de gerar valor futuro. Flint força esta mudança conceitual. O programa produziu benefícios que vão além da contabilidade hospitalar: redução de 91% nas taxas de despejo, diminuição de 14 pontos percentuais na depressão pós-parto, redução de 18% nos nascimentos prematuros e de 27% no baixo peso ao nascer. Estes são dividendos de um investimento bem aplicado.

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O programa revela um paradoxo fundamental das políticas públicas: intervenções preventivas são simultaneamente as mais eficazes e as mais difíceis de justificar politicamente. É mais fácil aprovar orçamentos para tratar problemas existentes do que os prevenir, mesmo quando a prevenção custa uma fração do tratamento. Uma internação em UTI neonatal custa entre US$ 71.000 e US$ 161.000. O investimento total por família no Rx Kids é de US$ 7.500. A matemática é simples, mas a política é complexa.

Críticos podem argumentar que programas como Rx Kids são insustentáveis em escala nacional. Esta objeção revela compreensão limitada sobre multiplicadores econômicos. Se Michigan expandiu o programa para 11 comunidades com US$ 20 milhões, os Estados Unidos podem replicá-lo por uma fração do que gastam com consequências da pobreza infantil. O programa não redistribui riqueza – cria valor. As famílias não recebem esmolas – participam de um ciclo virtuoso onde investimento inicial gera retornos sociais mensuráveis.

O Brasil, com tradição em transferências de renda como Auxílio Brasil e antigo Bolsa Família, tem focado predominantemente em condicionalidades e combate à pobreza extrema. O modelo de Flint sugere estratégia complementar revolucionária: um “Auxílio Gestante” nacional oferecendo R$ 2.000 durante a gravidez e R$ 500 mensais no primeiro ano do bebê. Considerando que o Brasil registra anualmente cerca de 2,8 milhões de nascimentos, com aproximadamente 40% em famílias vulneráveis, um programa piloto poderia beneficiar inicialmente 300 mil gestantes por ano. O investimento total seria de R$ 6,6 bilhões anuais – valor inferior ao que gastamos com consequências da mortalidade infantil, que no Nordeste ainda supera 16 por mil nascidos vivos.

As economias em UTIs neonatais do SUS, somadas à redução da mortalidade materna e infantil, poderiam justificar economicamente tal programa. Mais do que isso: em um país onde a desnutrição infantil voltou a crescer e a pobreza atinge 31% das crianças, um programa como este representaria não apenas uma política social inovadora, mas um investimento estratégico no futuro da nação.

Rx Kids representa mais do que um programa local bem-sucedido – é modelo para repensar o papel do Estado na economia moderna. Em vez de aguardar problemas para reagir, governos podem investir estrategicamente na prevenção, gerando retornos mensuráveis. Esta abordagem exige mudanças na forma como medimos sucesso governamental. Métricas tradicionais focam em gastos e beneficiários atendidos. Precisamos de indicadores que capturem valor criado – custos evitados, multiplicadores econômicos, benefícios intergeracionais. O programa de Flint comprova uma verdade inconveniente para ideólogos: políticas sociais bem desenhadas são simultaneamente compassivas e eficientes. Não precisamos escolher entre coração e carteira – podemos ter ambos. A lição é clara: quando tratamos assistência social como investimento em capital humano, descobrimos que bons negócios e boa política social são a mesma coisa. A pergunta não é se podemos custear programas como Rx Kids, mas se podemos custear não os ter quando cada real investido pode gerar retornos mensuráveis em saúde, educação e desenvolvimento econômico para as próximas gerações.

Hugo Meza Pinto é professor da Estácio em disciplinas de Gestão e de Economia.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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