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“Se tentássemos fazer uma conferência como essa nos EUA ou na Grã-Bretanha, ela não seria permitida”, conjeturou Nick Griffin, ex-líder do Partido Nacional Britânico, para concluir que “a Rússia mostrou-se mais livre que o Ocidente”. Dias atrás, um Fórum Conservador Internacional reuniu, em São Petersburgo, 300 representantes de partidos de ultradireita da Europa. O evento passou quase em branco na imprensa brasileira, como um conclave de extremistas insignificantes. Seria, não fosse o detalhe de contar com os auspícios do Rodina, partido russo que integra a coalizão de Vladimir Putin.

Roberto Fiore, da Forza Nuova, partido neofascista italiano, delineou os vetores da conferência: “Somos a vanguarda de uma nova Europa que logo emergirá. Será uma Europa cristã, uma Europa patriótica — e a Rússia não será apenas uma integrante disso, mas a força de liderança”. A história se repete como farsa. Os arautos da “nova Europa”, apoiada sobre a Cruz e a Pátria, imaginam uma reedição da Santa Aliança criada em 1815 pelo czar Alexandre I para combater as ideias liberais na Europa pós-napoleônica.

No encontro, os extremistas se revezaram no microfone para tecer elogios a Putin. Logo após a Revolução Russa, Lenin referiu-se aos ultraesquerdistas europeus como “idiotas úteis do Ocidente”. Às voltas com a crise na Ucrânia e as sanções ocidentais, Putin encontrou seus próprios “idiotas úteis”, que nem mesmo se envergonham de repetir a ladainha do Kremlin sobre o conflito ucraniano. A contradição assomou na forma da cacofonia. Enquanto Fiore declarava que “não me considero difamado quando sou chamado de fascista”, o russo Aleksei Zhilov explicava que todos os fascistas estão no governo de Kiev.

O capitalismo de Estado, o nacionalismo e o antiamericanismo funcionam como pontes entre duas cidades separadas por um rio raso: a ultradireita europeia e a esquerda latino-americana

Putin tem um óbvio interesse tático em estimular agitações xenófobas na Europa, mas o conclave de São Petersburgo articulou-se em torno de valores compartilhados. As balizas do presidente russo encontram-se no mundo das monarquias conservadoras do século 19. A “nação do sangue”, o cristianismo, a tradição e a autoridade são as boias flutuantes no seu oceano ideológico. Não é fortuito que o Kremlin apareça como um farol para a escumalha de neofascistas europeus.

Os oradores definiram o Mal nas suas diferentes fantasias: a globalização, o cosmopolitismo, os EUA, a União Europeia, os muçulmanos e os judeus. No site oficial, destacava-se um discurso de Putin que evoca uma “profunda crise demográfica e moral” do Ocidente, derivada do colapso dos valores tradicionais, do declínio da religião e da legalização do casamento gay. O alemão Udo Voigt, do Partido Nacional Democrático, uma organização racista, foi ovacionado ao denunciar as ameaças paralelas da hegemonia americana e da infiltração de homossexuais nos governos. Um consenso desenhou-se em torno da aversão à imigração e ao ateísmo, ácidos corrosivos que ameaçariam a sobrevivência da “raça caucasiana”. Dirigindo-se aos russos, o britânico Jim Dowson exibiu uma foto de Putin sem camisa montado num urso: “Obama e os EUA são homens efeminados, mas vocês foram abençoados por um homem que é homem”.

A francesa Marine Le Pen, da Frente Nacional, e o britânico Nigel Farage, do Ukip, foram convidados, mas alegaram compromissos nacionais para não comparecer. Um orador denunciou Le Pen pelo crime de ter amigos gays. Os líderes da direita nacionalista na França e na Grã-Bretanha, que conquistaram amplas parcelas do eleitorado, preferiram ausentar-se para evitar a contaminação radioativa dos fanáticos sem votos congregados na antiga capital russa. Mas nenhum dos dois oculta sua atração pelo czar restaurador da “Grande Rússia”. Farage descreve Putin como um dos raros líderes mundiais merecedores de admiração. Le Pen defende a anexação da Crimeia e desfere ferozes críticas às sanções contra a Rússia. Em novembro, a Frente Nacional obteve um empréstimo de US$ 11 milhões de um banco russo ligado ao Kremlin.

Numa entrevista recente, Le Pen declarou seu alinhamento à “visão econômica” de Putin, que “desenvolveu uma economia patriótica”, e elogiou a firmeza do presidente russo frente à “guerra fria conduzida contra ele pela União Europeia, sob comando dos EUA”. Frases quase idênticas às da neofascista francesa pontilham os discursos do venezuelano Nicolás Maduro, como antes apareciam nos de Hugo Chávez. O capitalismo de Estado, o nacionalismo e o antiamericanismo funcionam como pontes entre duas cidades separadas por um rio raso: a ultradireita europeia e a esquerda latino-americana. Essas chaves ajudam a decifrar o interesse geopolítico de setores do lulopetismo pelos Brics e o perene silêncio do Brasil sobre a agressão russa à Ucrânia.

As mesmas chaves iluminam uma teia de curiosas associações. O partido neonazista grego Aurora Dourada, que defralda suásticas em Atenas, enviou dois representantes a São Petersburgo. Um deles usou o microfone para pregar o estreitamento de relações econômicas entre a Grécia e a Rússia, argumentando que só assim seu país se libertaria da “opressão alemã”. O Syriza, partido esquerdista que controla o governo da Grécia, evidentemente não foi convidado para o encontro da extrema-direita. Contudo, o gabinete grego critica as sanções europeias à Rússia, sonda Moscou sobre a hipótese de concessão de empréstimos e até mesmo acalenta a ideia explosiva de cooperação com Moscou no terreno da modernização militar.

Linhas paralelas: vozes ligadas ao Syriza mencionam cotidianamente a “opressão alemã” e desenvolveram o hábito tóxico de colar o bigodinho de Hitler sobre imagens do rosto de Angela Merkel. Na sede do Syriza, antes do triunfo eleitoral, destacava-se sobre uma parede branca a célebre fotografia de Che Guevara. A foto sumiu, mas o primeiro-ministro Alexis Tsipras nunca renegou sua admiração por Fidel Castro e Hugo Chávez. Hoje, nos jardins do Kremlin, os extremos se encontram.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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