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Numa fração infinitesimal, o desprezo à vida e a incerteza definiram o herege para castigá-lo de forma brutal, assombrando Beccaria. Em vez de um rosto, imagens de crueldade no linchamento de uma mulher, suspeita de ter ligação com o sequestro de crianças para rituais de magia negra, no bairro de Morrinhos, periferia de Guarujá. Com a licença poética de João Bosco, de frente pro crime, está lá um corpo estendido no chão. Em vez de reza, praga da incivilidade humana e ações coordenadas servindo de amém. Libelos de sangue mesclados por delírios coletivos e loucuras em massa semelhantes aos da inquisição medieval. Ruína moral. Não há o que comemorar no mundo quando a vingança, "errada em si mesma", constitui um dos principais obstáculos ao progresso humano.

E, depois do corpo estendido no chão, sem pressa, absortos na via dolorosa, sem princípio e sem fim, com abuso tirânico, o puniram transmudando-lhe a vida numa interminável penitência, como Ahsverus (Judas) de Euclides da Cunha, monopolizando o ódio universal.

A crueldade foi acentuada pelas imagens divulgadas na internet, pelos gestos vivos da tortura tão trágica que a eterna condenada parecia ressuscitar de modo a desafiar a repulsa que saciou as almas crentes na versão sequer confirmada pela polícia.

E lá, diante do corpo estendido no chão, vozes com traços admiráveis de ironia triunfal vingaram-se de si mesmas: puniram-se da fraqueza moral, do barbarismo a que ainda estão agarradas. A apoteose da razão deu lugar ao instinto demoníaco.

Está lá a figura espancada no chão, enquanto outras vozes vacilaram indecisas, desafiando maldições e risadas, que espalharam em roda desolação e terror. E a história deu cruel lição sobre a natureza humana, demonstrando que o respeito pela vida de qualquer pessoa foi proporcional ao poder que elas detinham no momento. A força bruta, a tirania, o despotismo, a opressão se repetiram, como na tradição da malhação do Judas.

E lá deixaram o corpo estendido no chão e, pouco a pouco, debandaram, afastaram-se, dispersaram-se. Formas e gradações de bestialidade e egoísmo que embaçaram o verniz interior da civilidade, alimentando a vingança e a crueldade.

E, diante do corpo estendido no chão, os justiceiros se desigualaram da suposta agressora, pela crueldade imposta à malfeitora. Eles se apressaram mais a retribuir um dano que um benefício, a vingança virou prazer , como diria Tácito.

Não há vingança justa já afirmava Cervantes. Deixará a justiça de ser injusta se for inspirada num móvel humanitário? A justiça é sentimento que em sua abstração abarca simetria, equidade, harmonia. Para Ihering, o sentimento de justiça pode ser comparado ao amor, pois sua força jaz no sentir. Só o sentimento pode nos dar a compreensão e nos faz compadecer dos iguais. Se o vídeo deixou o gosto amargo da crueldade e vingança é porque ele foi capaz de transmutar a justiça em injustiça. Quando se ultrapassam os limites, a dor e a pústula física e moral evidenciam a derrota. Fica a sensação das deformações monstruosas das pulsões humanas, semelhantes às míticas górgonas: dominação, tirania, desorientação, vingança e violência, crueldade.

Rosane Kolotelo, professora de Teoria do Direito e coordenadora da Faculdade de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

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