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Recentemente, o presidente Lula questionou a legitimidade dos países detentores de armas nucleares para criticar o governo iraniano na busca de sua soberania nuclear. Desafiando ainda mais o sistema internacional oligárquico vigente, sugeriu o desmantelamento de todos os arsenais nucleares como pressuposto para um acordo democrático baseado na igualdade soberana de todas as nações.

Desde a visita do presidente do Irã ao Brasil, no último mês, o debate acerca da situação nuclear naquele país e suas relações com o governo brasileiro tem ensejado atenção privilegiada. As críticas pipocam, como se o Brasil não tivesse nem o direito, nem a maturidade para defender posições independentes em política externa, tendo de seguir alinhado com interesses que não são seus. Interessante perceber também que a visita do presidente de Israel não suscitou alvoroço semelhante, embora este país seja detentor de bombas atômicas há décadas.

Para elucidar o debate, alguns pontos devem ser esclarecidos. O tratado internacional que está na base da autoridade para integrar o rol de países de­­tentores de armas nucleares é o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que está caduco. O TNP é tão velho quanto o auge da Guerra Fria, pois data de 1968. Naquela época, objetivava primordialmente impedir um conflito nuclear criando uma espécie de "duopólio atômico" para os protagonistas do bi­­polarismo, Estados Unidos e União Soviética. Estes, por sua vez, deveriam proteger os países alinhados a seu bloco. Esse sistema acentuava o hegemonismo bipolar (e por isso mesmo França e China só aderiram ao TNP na década de 90), além de impedir a proliferação em direção aos países periféricos. Um exemplo desta possibilidade está no caso da Coreia do Norte, que denunciou o tratado em 2003 em nome de sua soberania nuclear.

Aquela realidade bipolar, não obstante, desmoronou junto com o muro de Berlim, dando origem ao unipolarismo militar em favor dos EUA. Isso explica alguns fatos: o patrocínio de conflitos que seriam inviáveis durante a Guerra Fria, como a agressão contra o Iraque e o Afeganistão, só para citar os principais; bem assim a manutenção de situações díspares como a de Irã e Israel, e os motivos que levam a comunidade internacional a forçar o primeiro a abrir mão de sua soberania nuclear, ao mesmo tempo em que tolera a recusa veemente do segundo de aderir ao TNP e de permitir a inspeção da AIEA.

Essa política discriminatória visa privilegiar o aliado regional dos EUA no Oriente Médio e viabilizar a implementação de uma política expansionista na região. É também bom lembrar que o Irã integrava o chamado "Eixo do Mal" de George W. Bush, ao lado de Iraque, Coreia do Norte e Cuba, muito embora não possua soldado algum invadindo território estrangeiro.

O TNP, ainda que caduco, serve bem à perpetuação dos privilégios das potências que já adquiriram a tecnologia nuclear. O raciocínio funciona da seguinte maneira: quem é potência nuclear conti­­nuará sendo assim perpetuamente, e quem não é não poderá sê-lo jamais. Não se trata de fazer a defesa da proliferação nuclear, pois certamente nela não está a trajetória para uma paz duradoura. É inaceitável, porém, a imposição dessa ordem internacional que reflete uma geopolítica que há muito já ganhou novos contornos.

Por isso mesmo, o presidente Lula disse à líder alemã Ângela Merkel que as potências atômicas não têm moral para exigir o desarme de países como o Irã, questionando a tentativa daquelas de impor o desarmamento aos demais países e de negar o direito destes à isonomia nuclear. Como se todos possuíssem necessariamente objetivos terroristas e como se operasse ainda o princípio ideológico do "Eixo do Mal", no momento em que Barack Obama recebe o Prêmio Nobel da Paz e decide enviar mais 30 mil soldados para a guerra no Afeganistão! Por que Israel tem o direito de defesa e o Irã não pode tê-lo?

Samuel Pinheiro Guimarães ponderou, não sem razão, que a Coreia do Norte talvez não tenha tido o mesmo destino do Iraque justamente porque tem armas atômicas. Ora, é justamente a recusa de se desarmar das potências nucleares que leva à proliferação, uma vez que os países que se sentem ameaçados sabem que não serão atacados se estiverem armados. Moral da história: não há legitimidade em manter os outros desarmados enquanto alguns preservam seus privilégios nucleares. O desarmamento deveria valer para todos.

Larissa Ramina, doutora em Direito Internacional pela USP, é professora da UniBrasil

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