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Não, não me refiro à força visual que todos nós temos para ver e distinguir objetos, paisagens, belezas, cores etc. Nestas linhas quero, sim, abordar o sentido de “ver” segundo as inspirações provenientes do evangelho deste domingo (Mc 10, 46-52).

Sei que a fé ingênua pode levar a mistificações indevidas ou a simplificações empobrecedoras. Mas também não se pode ignorar que a linguagem das experiências humanas é profundamente assinalada pelo vigor dos símbolos. Assim, para se falar do amor servimo-nos da flor, da música, da poesia. Para o afeto usamos o toque suave. Se amamos um time de futebol, servimo-nos da sua cor distintiva. O símbolo fala por caminhos não conceituais.

É por estas sendas que quero me referir ao pedido do personagem do evangelho de hoje, um cego que apresenta seu pedido a Jesus: “Mestre, que eu veja!” Em tempos de crises tão múltiplas como as atuais, vez por outra alguma voz nos lembra de que é preciso aguçar a percepção para as potenciais oportunidades cujos sinais é preciso aprender a reconhecer. Quem os percebe, e reage criativamente, sai na frente. Algo semelhante se pode dizer acerca do que pretende o evangelista ao traduzir o pedido do cego. O que queria ele “ver”? Até, quem sabe, poderíamos também nós nos deixar ensinar.

Quem ama com totalidade esvazia-se de si mesmo. Renuncia-se. Mas torna-se capaz de “ver” com os olhos de Deus

Sirvamo-nos de algumas indicações geográficas: Jesus e seus discípulos estavam já próximos de Jerusalém (uma viagem em torno de 140 km). Vinham da Galileia, ao norte da Palestina. Longo caminho para os padrões da época. Chegara a Jericó (em torno de 20 km do objetivo). Um cego e mendigo começou a gritar. Pedia por compaixão. No encontro com Jesus, estando ele em caminho, pronunciou sua súplica. Quando passou a ver, tendo recuperado a visão, o “ex-cego” seguia Jesus “pelo caminho”. Agora tinha para onde caminhar, podia decidir-se por objetivos, conseguiria conferir uma direção à sua história de vida.

Não esqueçamos de que o fim da viagem é Jerusalém. Sim, é uma cidade importante. Mas, para além da localidade, a referência é cruz. Lá Jesus encontraria a hostilidade, a prisão, a cruz e a ressurreição. É para aquele caminho que o antigo segue. Com Jesus, o antigo cego encaminha-se para a cruz. Agora ele não apenas vê uma estrada a percorrer. Ele também se tornou capaz de “ver” que há um sentido de vitória nas experiências de cruz. O que era interpretado como absurdo, para quem passou a “ver” como Jesus “via”, e com ele passou a caminhar na mesma direção, o caminho da não violência e do “não abandono” da cruz se revelou rico de possibilidades de vitória. A vitória do ressuscitado.

Graças a Deus hoje vivemos tempos de muitos triunfos da ciência. E é justo que se busquem todas os meios que diminuem o sofrimento humano. Todos os sofrimentos. Mas, quando se trata de relações de convivência, de comunhão, de verdade e de sentido para a vida, muito mais do que recursos científicos, é preciso muita força interior para o amor e para a gratuidade. E neste âmbito é preciso “ver” que apenas êxitos e sucessos ameaçam severamente nossa capacidade de amar e de perdoar. Quem ama com totalidade esvazia-se de si mesmo. Renuncia-se. Mas torna-se capaz de “ver” com os olhos de Deus.

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