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Dólar
Dólar.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todo o lugar, diagnosticá-los erroneamente e aplicar-lhes o remédio incorreto. (Julius Henry Marx)

Valéry Giscard d’Estaing era um homem romântico. Entre as paixões de VGE, como era conhecido na França, estavam princesas inglesas, ovos mexidos e moedas fortes. Opositor ferrenho da política monetária norte-americana durante mais de meio século, batizou de “privilégio exorbitante” a posição ocupada pelo dólar como moeda de reserva internacional. Esse privilégio, contudo, dá sinais de estar em risco diante do novo capítulo da política expansionista do Tio Sam.

VGE não era de tecer críticas vazias. Iniciara sua carreira na prestigiosa Inspection des Finances – a Receita francesa – e aprendera economia com Jacques Rueff, o crítico feroz do sistema de Bretton Woods, o arranjo financeiro internacional estruturado ao fim da Segunda Guerra Mundial, que estabelecia a hegemonia do dólar americano como moeda de referência, atrelada ao ouro. Segundo Rueff, ao fim do conflito mundial, os EUA, que detinham as maiores reservas de ouro do mundo, pagavam por suas importações em dólares, o que gerava uma “dupla pirâmide de créditos”, porque os bancos estrangeiros (dos países exportadores) que recebiam esses pagamentos geravam, a partir deles, novos créditos para seus clientes locais, cujos juros revertiam em dólares novamente para os bancos norte-americanos, que, em uma nova rodada, geravam ainda mais créditos para seus clientes domésticos, em dupla expansão da base monetária dos EUA, a partir dos multiplicadores bancários. Esse mecanismo permitia aos EUA incorrerem em déficits perenes em sua balança de pagamentos, porque se endividavam em sua própria moeda. Rueff batizou esse mecanismo de “déficits sem lágrimas”, designação adotada com entusiasmo por Charles de Gaulle.

O privilégio exorbitante de incorrer em “déficits sem lágrimas”, contudo, padecia de um vício de origem. O dólar nada mais era do que uma promessa, pelo Tesouro dos EUA, de pagamento de uma certa quantia em ouro. Uma corrida internacional pelas reservas de ouro dos EUA, assim, colocaria em xeque a estabilidade do sistema financeiro internacional. VGE acusava os EUA de exportarem inflação para o resto do mundo. Apesar dos riscos, essa corrida ao ouro americano ocorreu, de fato, no fim dos anos 1960. O presidente Richard Nixon, em reação, suspendeu a convertibilidade do dólar em ouro, unilateralmente, em 1971, inaugurando um novo padrão monetário internacional. O dólar, que antes valia ouro, agora vale “fugazis” – como Matthew McConaughey designa um elemento que não existe na tabela periódica.

Trata-se de um sistema monetário internacional puramente psicológico. O sistema de livre convertibilidade opera com base na confiança de que as pessoas acham que o dólar vale o que as pessoas acham que o dólar vale. “Humor é a razão enlouquecida.” O sistema atual é, por conseguinte, extremamente vulnerável a choques de confiança. No último quarto de século, ele foi mantido por um equilíbrio tênue entre as importações norte-americanas e as exportações chinesas, em um fenômeno de quase-simbiose monetária batizado por Niall Ferguson de “Chimerica”. As duas cabeças do monstro já haviam decidido se separar quando a pandemia caiu como um dilúvio. Um dilúvio de fugazis.

Desde o início da pandemia, o Federal Reserve (Fed) já injetou mais de US$ 2,9 trilhões na economia americana. A dupla Yellen-Powell pretende aplicar um pacote de estímulos que irá injetar mais US$ 1,9 trilhão neste ano. Trata-se da maior expansão da base monetária norte-americana da sua história. Em simples termos de oferta e demanda, com mais oferta, o valor dos fugazis cai, gerando inflação, cuja taxa para dez anos já atingiu 2,2%, a maior desde 2014. Além disso, os juros dos títulos da dívida dos EUA também estão subindo, já atingindo a marca de 1,3% para os papéis com vencimento em dez anos (fecharam 2020 em 0,93%). Isso já indica um possível gargalo de compradores para os títulos da dívida norte-americana, ou, posto de outra forma, de financiadores externos dos déficits dos EUA. Parece que as pessoas começam a achar que o dólar não vale o que as pessoas acham que o dólar não vale. Os EUA precisam, assim, aumentar a demanda por dólares no exterior, em compasso com a expansão da sua base monetária doméstica, para que não se quebre o delicado encanto dos fugazis.

Diante desse contexto, ao menos três cenários se divisam no horizonte. No primeiro, os EUA conseguem manter o dólar como moeda de referência, sobrevivendo a uma expansão histórica de sua base monetária. O resultado são quebras das bolsas de valores, que perderão seu atrativo diante de uma correção dos juros pagos pelos títulos do tesouro norte-americano. No segundo cenário, essa transição não ocorre a contento e há uma quebra internacional do dólar. O resultado é uma apreciação dos ativos reais (commodities, imóveis etc.) e dos instrumentos de reservas, como o ouro e as criptomoedas. Esse processo geraria, possivelmente, um choque inflacionário de custos. O terceiro cenário, contudo, é o mais interessante. Seria possível vislumbrar uma hipótese em que essa transição da base monetária norte-americana se concretizasse na transformação do dólar em uma criptomoeda, administrada diretamente pelo Fed sem o intermédio dos bancos comerciais. Aqui, ainda haveria um choque nas bolsas e um processo inflacionário, mas talvez não tão severo e, possivelmente, sem estagnação. Perderiam os bancos e quem tem Bitcoin. Nenhum desses cenários, contudo, seria indolor.

VGE partiu em dezembro passado. Não chegou a ver o fim trágico dos “privilégios exorbitantes” dos EUA. Para os que ficam neste vale de lágrimas, contudo, a questão premente não é se, mas quando o Tio Sam vai chorar. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Paulo Fernando Pinheiro Machado é diplomata e advogado, fellow do Chartered Institute of Arbitrators. As opiniões expressas no presente artigo são de caráter exclusivamente pessoal, não se confundindo, necessariamente, com a de qualquer instituição a que porventura o autor se filie. 

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