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Supremo não tem competência para interferir na anistia

Ministro Dino diz que crimes atribuídos a Bolsonaro não podem ser anistiados
Ministro Dino diz que crimes atribuídos a Bolsonaro não podem ser anistiados. (Foto: Gustavo Moreno/STF)

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O Supremo Tribunal Federal não é reformador ou revisor da Constituição. Também não é “editor” dela, ou da nação, como já houve ministro seu que pretendesse. O que lhe cabe, portanto, não é modificar a Constituição, segundo suas cabecinhas particulares, reescrevê-la, revê-la, mas, tão somente, porque são apenas os seus guardas, aplicá-la e meramente interpretá-la. Ora, se a Constituição dá ao Congresso, mediante lei (portanto, com a sanção do presidente – art 21, XVII e art 48, VIII), o poder de conceder anistia, e não restringe esse poder, definindo crimes que não poderiam ser objeto de anistia, como e por que meter-se-ia o Supremo a derrubar eventual anistia que a lei conceder, declarando-a inconstitucional?

Há, hoje, ministros do Supremo que, antecipando o voto (e, portanto, expressando um prejulgamento que os torna suspeitos) e metendo-se a interferir nas atividades de outro poder, andam a sustentar que pretendidas anistias contra os “crimes” do 8 de janeiro seriam inconstitucionais – e nisso são imitados por “juristas” e jornalistas que se dispensam de pensar por conta própria. Em favor dessa tese imaginosa, apresentam os seguintes argumentos:

a) Pretendem que não pode haver anistia contra cláusula pétrea da Constituição, sendo cláusula pétrea o estado democrático de Direito. Isso significa tão somente suprimir todo o instituto da anistia, uma vez que todo o artigo 5º é cláusula pétrea, protegendo, entre tantos outros, o direito à vida e o direito de propriedade, e os tipos penais mais elementares são exatamente o homicídio e o furto/roubo; atentados contra, obviamente, cláusulas pétreas e, segundo o tortuoso raciocínio, não anistiáveis. Ao cabo, não sobraria nenhum crime para ser anistiado, e eis extinto (por conta dessa imaginação criadora) o instituto da anistia…

b) Argumentam ainda que, sendo imprescritível e inafiançável o crime contra a ordem constitucional e o Estado Democrático nos termos da Constituição (art 5º, XLIV), daí se seguiria que seria também insuscetível de anistia. Em que medida, porém, essa analogia não é mais do que mera interpretação, e, na verdade, entra na categoria duvidosa (e inadmissível) de revisão e reescrita da Constituição?

Impedir anistia em favor de crimes contra o Estado é, também, ignorar toda a história brasileira. Porque o que a nossa história demonstra é que a anistia veio sendo aplicada justamente para os crimes contra o Estado democrático de Direito

Acontece que a Constituição distingue claramente essas três situações: imprescritibilidade, inafiançabilidade e insuscetibilidade de anistia. Nos inciso XLII, XLIII e XLIV do art 5, a Constituição trata uns crimes como imprescritíveis e inafiançáveis e outros como inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Ou seja, claramente, no texto constitucional, imprescritibilidade e insuscetibilidade de anistia são coisas distintas: uma condição não está incluída na outra, não se deduz da outra. Um crime pode ser imprescritível e, no entanto, passível de anistia. Como outro crime pode ser insuscetível de anistia e, no entanto, ser prescritível. Identificar uma condição com a outra, ou deduzir de uma (a imprescritiblidade) a outra (insuscetibilidade de anistia) é pura imaginação criadora, contra os termos expressos da Constituição.

c) Por último diz-se que a impossibilidade de anistia para esses crimes estaria implícita na Constituição, uma vez que, se isso fosse possível, a Constituição estaria admitindo anistia de atos praticados contra sua própria existência e validade. Seria uma absoluta contradição a Constituição admitir anistia de crimes contra o Estado democrático de Direito; portanto, contra a ordem constitucional; portanto, contra ela mesma. Trata-se de exercício da mais pura imaginação criadora. Se a Constituição não fez essa restrição, e até, como acabamos de referir, distingue claramente imprescritibilidade, inafiançabilidade e insuscetibilidade de anistia, como e por que, a que título, com qual direito, a fará o intérprete?

Contrariamente a essa interpretação imaginosa e criativa, deve-se verificar que a Constituição tem, sim, disposição expressa a respeito de anistia ou não anistia desse tipo de crime. Porque há um único caso em que a Constituição estabelece que algum crime não é passível de anistia. São os crimes do inciso XLIII do art. 5º, no qual a Constituição dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

Em relação aos crimes contra o Estado democrático de Direito, no entanto, a expressa disposição constitucional é diferente. O que ela dispõe (art 5º inciso XLIV) é que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

Os textos constitucionais são claríssimos. O óbvio é que uns crimes a Constituição tratou como inafiançáveis e imprescritíveis (os dos inciso XLII e XLIV) – prática de racismo e ação de grupo armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático; ao passo que outros (os vários elencados no inciso intermediário, o XLIII: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos) a Constituição estabeleceu que seriam inafiançáveis (não disse que seriam imprescritíveis) e “insuscetíveis de graça ou anistia”. Somente estes, portanto, somente os arrolados no inciso XLIII, não podem ser objeto de anistia.

Impedir anistia em favor de crimes contra o Estado é, também, ignorar toda a história brasileira. Porque o que a nossa história demonstra é que a anistia veio sendo aplicada justamente para os crimes contra o Estado democrático de Direito, ou seja, contra a ordem constitucional. Prevalentemente, a anistia tem sido aplicada não contra crimes comuns, ou contra o comum dos crimes, mas exatamente em favor dos criminosos de crimes contra o Estado democrático de Direito, contra a ordem constitucional.

A começar pelas anistias de Prudente de Moraes, logo nos começos da República, em 1895, para pacificar o país, beneficiando os revoltosos de 1893, que se haviam levantado contra o governo de Floriano Peixoto, portanto para derrubar o governo, para dar golpe de estado, para atentar contra o Estado democrático de Direito…

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Assim também foi a anistia que Juscelino decretou contra os revoltosos de Jacareacanga e de Aragarças, cujos crimes não foram crimes comuns, mas exatamente contra a ordem constitucional, uma vez que seu objetivo era especificamente a destituição e a deposição do governo constituído, claramente golpe de estado.

Do mesmo modo a anistia de 1979, que beneficiou os que pretendiam, e por obra do terrorismo e da força das guerrilhas urbanas e rurais, exatamente depor o governo existente, golpe de Estado, portanto, – muitos os quais estão hoje berrando “sem anistia!”, isto é, negando a outros o que desejaram para si mesmos. Essa anistia era reivindicada com as exigências que ficaram famosas: deveria ser “ampla, geral e irrestrita”.

Todas essas grandes anistias da história brasileira beneficiaram justamente os culpados de crimes de golpe de estado, atentados contra a ordem constitucional, obviamente atentados contra o Estado democrático de Direito. Ao invés de se pretender que não pode haver anistia em favor de criminosos de crimes contra a ordem constitucional, o que a história mostra, em conclusão, é que anistia tem sido concedida justamente em favor desses criminosos.

E tanto era assim que a Constituição imediatamente anterior à atual (a Emenda 1, de 1969) continha um dispositivo (abandonado pela Constituição vigente) a respeito da iniciativa da lei para concessão de anistia, estabelecendo (art 57, VI) que seria “de competência exclusiva do Presidente da República a iniciativa das leis que (...) VI – concedam anistia relativa a crimes políticos, ouvido o Conselho de Segurança Nacional”.

Havia aí o claro reconhecimento constitucional da tradição brasileira de concessão de anistia para crimes políticos, o primeiro dos quais, obviamente, é o golpe de Estado, o atentado contra o Estado democrático de Direito.

Por fim, a doutrina e a jurisprudência. Não é nos livros de Direito Constitucional que se encontrará alguma coisa a respeito. Neste ponto, os constitucionalistas são paupérrimos. Praticamente ignoram o assunto. No máximo, reproduzem as regras constitucionais da competência para concessão de anistia (art 21, XVII e art 48, VIII). É na doutrina do Direito Penal (porque o Código Penal inclui a anistia entre as causas de extinção da punibilidade) que vamos encontrar alguns comentários.

Um penalista como Julio Fabbrini Mirabete dirá, então, que a anistia “tem a finalidade de fazer-se olvidar o crime e aplica-se principalmente aos crimes políticos”. Igualmente sucinto, Damásio de Jesus: a anistia “aplica-se, em regra, a crimes políticos (anistia espeial), nada obstando que incida sobre delitos comuns (anistia comum)”.

Mais completo, como sempre, Aníbal Bruno: anistia “é uma medida de interesse público, motivada, de ordinário, por considerações de ordem política, inspiradas na necessidade da paz social.” “Os fatos que ela atinge são comumente crimes políticos ou a eles conexos, ou crimes militares, eleitorais ou de impressa. O crime comum numa medida de alcance coletivo é do domínio do indulto. Mas não faltam exemplos de anistia que atinja também crimes desse gênero”. A anistia “reflete exigências da opinião pública ou do senso político dos dirigentes do país”.

Também a jurisprudência adota o mesmo entendimento. Veja-se, por exemplo, o acórdão do próprio Supremo Tribunal Federal, na ADI 1231 (relator: Min. Carlos Veloso): “A anistia, que depende de lei, é para os crimes políticos. Essa é a regra. Consubstancia ela ato político, com natureza política. Excepcionalmente, estende-se a crimes comuns, certo que, para estes, há o indulto e a graça, institutos distintos da anistia (CF, art. 84, XII). Pode abranger, também, qualquer sanção imposta por lei.”

Em conclusão, impedir anistia para crimes contra o Estado democrático de Direito não somente não é interpretação mas verdadeira criação de texto constitucional novo, edição de nova disposição constitucional, diferente da vigente, portanto, papel do reformador constitucional, não do Supremo. Será muito esperar que o Supremo Tribunal Federal se contenha no seu papel?

José Luiz Delgado é ex-diretor e professor sênior de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, e foi secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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