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Sustentação oral: quem cala a defesa, condena a democracia

OAB-SP orienta advogados a não enviarem sustentação oral gravada
OAB considera a resolução do CNJ uma ameaça às prerrogativas da advocacia e dos cidadãos. (Foto: G. Dettmar/Ag. CNJ)

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Cresce o número de sessões em que o Supremo Tribunal Federal simplesmente impede sustentações orais, privando advogados de exercerem um direito elementar da defesa. O que parece uma incoerência é, na verdade, uma prática coerente com a lógica atual do STF: a seletividade do devido processo legal.

Ao permitir que garantias fundamentais sejam aplicadas conforme a conveniência política ou institucional, o Supremo transforma princípios constitucionais em instrumentos de poder. O devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório deixam de ser cláusulas pétreas para se tornarem recursos estratégicos — ativados ou ignorados conforme o perfil do caso, do réu ou da pauta do dia.

Enquanto se debate o alcance de garantias em abstrato, a prática de suprimir sustentações orais expõe uma face menos visível – porém mais grave – da atual cultura jurídica brasileira: a institucionalização do silêncio imposto. Negar a palavra ao advogado não é apenas violar uma formalidade processual. É suprimir a presença do cidadão no tribunal. A sustentação oral é o momento em que o jurisdicionado, por meio de seu defensor, entra efetivamente no julgamento. Quando essa fala é impedida, o processo se torna um monólogo togado – com aparência de legalidade, mas sem verdadeira justiça.

Essa conduta afronta diretamente o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, que assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A sustentação oral é um desses meios – prevista também no Regimento Interno do próprio STF. Negá-la arbitrariamente viola a própria legalidade formal do julgamento.

A crítica ao cerceamento das sustentações orais precisa ir além da categoria da "falha administrativa". É uma ameaça direta à legitimidade dos julgamentos. E não há jurisprudência, precedentes ou eficiência institucional que justifique a mutilação do direito de defesa

Não encontra respaldo em nenhuma concepção democrática do processo. Pelo contrário, aproxima-se perigosamente do modelo inquisitorial, centrado na autoridade do julgador e não na paridade de armas. Como advertia Hans Kelsen, as formas processuais não são meros adornos: são garantias estruturais contra o arbítrio. Suprimir uma delas – como a sustentação oral – é romper com o pacto institucional que sustenta o edifício jurídico.

O devido processo legal não é um detalhe técnico nem uma concessão graciosa do Estado. É um pilar essencial da justiça democrática, fundado na ideia de que todo cidadão, independentemente de sua posição social, política ou econômica, tem o direito de ser ouvido antes de qualquer decisão que possa restringir sua liberdade, bens ou dignidade. Trata-se de uma garantia que visa limitar o poder e preservar a integridade do julgamento, assegurando equilíbrio, transparência, racionalidade e participação das partes envolvidas.

Ao longo da história constitucional, o devido processo legal foi precisamente o antídoto contra os abusos dos regimes autoritários, que julgavam sem ouvir, condenavam sem defesa e decidiam sob critérios extrajurídicos. Representa mais do que uma regra processual: é uma expressão institucional da própria dignidade humana. Sua observância protege o jurisdicionado, mas também o julgador – impedindo decisões arbitrárias, revanchistas ou contaminadas pela política.

Immanuel Kant, em sua filosofia moral, sustentava que os atos só são justos se pautados pelo dever – e não por conveniências. Aplicar garantias conforme interesses políticos é negar o valor intrínseco da dignidade humana. E isso se agrava quando parte da mais alta Corte do país, que deveria ser exemplo de contenção e previsibilidade, oscila entre o garantismo performático e o autoritarismo processual.

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Não se trata de um desvio pontual, mas de uma mutação estrutural na cultura jurídica do Supremo, que vem assumindo para si não apenas a guarda da Constituição, mas o papel de intérprete soberano, acima da crítica e imune à autolimitação. O problema é que um tribunal que escolhe quando a Constituição vale, já não a aplica – a administra.

Países como Alemanha e Estados Unidos, ambos com forte tradição constitucionalista, asseguram o direito à sustentação oral como parte integrante do contraditório. Na Alemanha, o princípio do rechtlichesGehör (direito de ser ouvido) é tratado como um direito fundamental inviolável. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte valoriza a sustentação oral como parte essencial do processo decisório, chegando a publicar um manual orientando advogados sobre como proceder durante suas apresentações, enfatizando a importância de argumentos claros e objetivos.

Luigi Ferrajoli ensina que um sistema penal democrático precisa ser universal, previsível e limitado. Se ele seleciona os sujeitos a quem se aplicam as garantias, já deixou de ser democrático. O mesmo vale para o processo constitucional: quando as garantias fundamentais são tratadas como privilégios circunstanciais, elas já não existem como direitos – mas como concessões.

Por isso, a crítica ao cerceamento das sustentações orais precisa ir além da categoria da "falha administrativa". É uma ameaça direta à legitimidade dos julgamentos. E não há jurisprudência, precedentes ou eficiência institucional que justifique a mutilação do direito de defesa. A Justiça não pode ser feita sem escuta. Uma Corte que escolhe a quem ouve já não julga em nome do Direito – mas em nome de si mesma. E isso, no fim, representa o maior risco à própria democracia constitucional que ela diz proteger.

Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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