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Temos de nos preparar para a próxima pandemia
| Foto: Pixabay

Quando a próxima pandemia eclodir, teremos de combatê-la em duas frentes. A primeira é aquela em que pensamos em um primeiro momento, ou seja, entender a doença, pesquisar a cura e inocular a população; já a segunda é recente, e talvez ninguém pense nela logo de cara: combater a avalanche de boatos, informações erradas e mentiras explícitas que vão pipocar na internet.

Esta última será como as campanhas de desinformação russas durante as eleições presidenciais de 2016, com o agravante de ser uma crise de saúde mortífera e ter grandes chances de não ser orquestrada por um governo malicioso. Mas, embora os dois problemas – a desinformação que afeta a democracia e a desinformação que afeta a saúde pública – tenham soluções semelhantes, o segundo é muito menos político. Se batalharmos para resolver a questão da ignorância em relação à doença, é bem possível que a solução acabe tendo uma aplicação democrática.

As pandemias fazem parte do nosso futuro. Talvez sejam como a gripe de Hong Kong, em 1968, que matou um milhão de pessoas, ou a versão espanhola de 1918, que dizimou mais de 40 milhões. A medicina moderna as torna menos prováveis e menos letais, é verdade, mas, por outro lado, o comércio e as viagens globais, a densidade populacional crescente, a diminuição dos habitats de vida selvagem e a criação confinada de animais em volumes imensos para satisfazer uma população cada vez maior e mais rica as tornam certamente muito possíveis. Os especialistas são unânimes em dizer que não é uma questão de "se", mas sim de "quando".

E, quando a próxima se der, ter informações corretas será tão importante quanto um tratamento eficaz. Vimos isso em 2014, quando o governo nigeriano conseguiu conter e reduzir uma epidemia de ebola de proporções subcontinentais a apenas vinte infectados e oito mortes. Parte desse sucesso se deu por causa da forma pela qual as autoridades se comunicaram com a população, usando vídeos feitos com verbas públicas, campanhas nas redes sociais e especialistas internacionais. Sem isso, o número de vítimas em Lagos, uma cidade de 21 milhões de habitantes, provavelmente teria sido muito maior que os onze mil registrados no resto do continente.

Há muitas razões para esperar uma avalanche de desinformação e boatos durante uma pandemia. Nas primeiras horas e dias, os dados serão poucos e os boatos, fartos. Afinal, a grande maioria não é de profissionais da saúde nem de cientistas, ou seja, não podemos distinguir o que é fato do que é ficção. Pior que isso, ficaremos apavorados. O cérebro humano opera de um jeito diferente quando estamos com medo, agarrando-se a qualquer coisa que faça com que nos sintamos mais seguros, mesmo que não seja verdade.

Há muitas razões para esperar uma avalanche de desinformação e boatos durante uma pandemia

Os boatos e a desinformação podem facilmente superar os canais de notícias confiáveis, com as pessoas compartilhando tuítes, fotos e vídeos. Muito disso será até bem-intencionado, mas errado – como o que acontece com a comunidade antivacinação hoje em dia –, e, em parte, cheio de más intenções. Foi o que aconteceu nos anos 1980, quando a KGB orquestrou uma campanha de desinformação sofisticada, a Operação Infektion, para espalhar os rumores de que o HIV/Aids era resultado de uma arma biológica norte-americana que tinha dado errado. É perfeitamente razoável acreditar que algum grupo ou país disseminaria mentiras de propósito para tentar aumentar o número de mortos e o caos.

E não seria apenas em relação aos tratamentos – como funcionam e se são seguros, ou os que não são eficazes e perigosos. Na verdade, a desinformação pode afetar a capacidade da sociedade de lidar com uma pandemia nos mais variados níveis. Neste momento, por exemplo, o programa emergencial do ebola, na República Democrática do Congo, está sendo afetado pela desconfiança dos profissionais de saúde e das autoridades.

Não é preciso uma imaginação muito fértil para saber que isso pode acabar em desastre. Jay Walker, curador das conferências Tedmed, abordou algumas possibilidades em um artigo de 2016: gente lotando e até saqueando farmácias para tentar comprar um remédio muitas vezes irrelevante ou inexistente; gente fugindo e esvaziando as cidades, forçando sua paralisação; médicos e enfermeiros abandonando o trabalho; caminhoneiros e outras pessoas essenciais com medo de entrar nas áreas infectadas; sites oficiais como o CDC.gov invadidos e desacreditados. São coisas que podem ampliar inúmeras vezes os efeitos de uma pandemia e, em casos extremos, até levar a um colapso total da sociedade.

Será o caso de organizações governamentais de saúde, profissionais da área, empresas de redes sociais e da imprensa tradicional juntarem forças e trabalharem juntos. E não há uma única solução: serão necessárias várias intervenções diferentes, mas em sincronia. Elas serão muito semelhantes ao que já discutimos agora em relação às campanhas influenciadoras dos governos e de outras informações que visam nossos processos democráticos: métodos visíveis de identificação de histórias falsas, identificação e apagamento de postagens e contas falsas, meios de promover notícias oficiais e verdadeiras, e por aí vai. Absolutamente necessárias, terão de ser feitas automaticamente e em tempo real.

Leia também: Informação versus fake news (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 22 de abril de 2019)

Leia também: Pais, por favor, vacinem seus filhos! (artigo de Jaime Rocha, publicado em 31 de agosto de 2018)

Desde as eleições presidenciais de 2016, estamos falando de campanhas de doutrinação e da forma como as redes sociais aumentam e propagam as notícias falsas, permitindo que as mensagens nocivas e prejudiciais se espalhem facilmente. É uma discussão difícil no clima político hiperpolarizado atual. Depois de qualquer eleição, o vencedor tem toda a motivação para minimizar o papel das "fake news".

Com as pandemias, porém, o caso é outro; não há eleitorado que defenda a morte das pessoas por causa de desinformação. O Google não quer que os resultados das buscas bem-intencionadas das pessoas levem a fatalidades; o Facebook e o Twitter não querem gente em suas plataformas compartilhando inverdades que resultem em óbitos individuais ou em massa. Pensar em pandemias nos abre uma opção apolítica de abordagem coletiva ao problema da desinformação e das notícias falsas – e é muito provável que qualquer solução para elas possa ser aplicada às dificuldades mais gerais e mais políticas.

As pandemias são inevitáveis. O bioterrorismo já se faz possível e só vai se tornar mais fácil conforme as tecnologias se tornarem mais baratas e comuns. Estamos enfrentando a maior epidemia de sarampo dos últimos 25 anos graças ao movimento antivacinação, que "sequestrou" as redes sociais para ampliar o alcance de suas mensagens. Parece que somos incapazes de combater a desinformação e a pseudociência que cerca a vacinação – e essas mesmas forças podem aumentar drasticamente as mortes e a comoção social no caso de uma pandemia.

Que os ataques doutrinários russos nas eleições de 2016 sirvam de alerta para essa e outras ameaças. Precisamos resolver juntos o problema da desinformação durante a pandemia – governos e indústrias em parceria com as autoridades médicas ao redor do mundo – antes que haja uma crise. De quebra, as soluções vão nos ajudar a reforçar as bases de nossa democracia.

Bruce Schneier é membro e professor da Harvard Kennedy School. Seu livro mais recente é "Click Here to Kill Everyone: Security and Survival in a Hyper-connected World".

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