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| Foto: Iwan Beijes/Free Images

Eu achei que viria para a Austrália para aprender a surfar, mas, em vez disso, aprendi a caminhar. Mais precisamente, tive de correr, acabei me arrastando e basicamente fui humilhada na pista ao tentar – sem sucesso – acompanhar o ritmo da atleta de marcha atlética mais excepcional do mundo.

Heather Lee tem 92 anos de idade, cinco títulos mundiais e oito australianos na modalidade. É dona do título de Idosa Australiana do Ano. E tem grandes planos para 2019 – ou seja, quebrar os próprios recordes –, o que significa que não dá mole quando se trata de se exercitar.

Lee pratica pelo menos três vezes por semana. As quartas-feiras, por exemplo, estão reservadas para o treinamento de intervalo com a treinadora Liz de Vries. “Nunca sei os horrores que ela tem preparados para mim, mas estou fazendo o relógio andar para trás, pelo menos em matéria de velocidade”, afirma Lee.

Em um dia comum, ela dá pelo menos 10 mil passos. “É um dos benefícios de parar de dirigir”, conta. Em 2018, de acordo com seu relógio fitness, foram 3.057.374.

A atleta, aliás, já estava se alongando com De Vries, mãe de três filhos e em excelente forma física, quando as encontrei em Richmond, a uma hora de Sydney, às 7h30 da manhã. “Estou com 55 e sou uma das poucas pessoas aqui em Richmond que conseguem acompanhar o ritmo da Heather”, explica.

Heather Lee sai todo dia disposta a superar Heather Lee

Muitas pessoas que eu conheço preferem viver no passado – e, quando falam do futuro, se mostram preocupadas com as dificuldades e obstáculos da idade avançada, o que é perfeitamente compreensível. Lee, entretanto, é diferente; olha para a frente com otimismo e determinação. E acha que isso se deve ao esporte. “Estou sempre na expectativa de competir de novo”, revela.

A marcha atlética é difícil; tentar manter o passo e conversar ao mesmo tempo, muito mais. Felizmente, Lee estava bem menos ofegante que eu. Tanto que, antes mesmo de completarmos nossa primeira volta, ela já me falara de suas caminhadas favoritas no interior (em Warrumbungle e Bungle Bungle), seus últimos recordes (ela completou dez quilômetros em uma hora, 24 minutos e 21 segundos), a Segunda Guerra Mundial (“Na véspera da invasão na Normandia eu sabia que ia acontecer alguma coisa. O ar estava elétrico”) e a rainha.

Lee nasceu na Ilha de Wight, na região meridional da Inglaterra, em 1926, mesmo ano em que veio ao mundo Elizabeth II. “Somos um pouco parecidas; aprendemos a mudar com o tempo. Eu, por exemplo, passei de ‘inglesa esnobe’ a australiana”. Caçula de duas meninas, jogava hóquei e tênis, andava a cavalo, nadava e andava de bicicleta, mas não era particularmente estudiosa. “Minha educação foi meio truncada, vivia sendo interrompida por ataques aéreos e coisas do gênero”, explica.

Casou-se com o primeiro marido, de quem não gosta de falar, na própria ilha, e com ele teve uma filha. Separou-se no início dos anos 60, aos 35. Com a menina, mudou-se para a Austrália alguns anos depois. “Queria começar uma vida nova”, justifica. E a carreira? “Nunca fiz nada que fosse realmente especial. Nos últimos anos, antes de migrar, trabalhei no correio. E, aliás, gostava muito.”

Especial mesmo foi a segunda união. Dois anos após chegar ao continente, ela se casou com um australiano chamado Leonard Lee e, no início dos anos 80, o casal se mudou para Queensland, que ela descreve como “uma vida maravilhosa, maravilhosa, maravilhosa, perfeita mesmo”. Moravam à beira-mar e tinham “umas duas mangueiras e mais de 20 mamoeiros só nossos”. Graças a isso, trocavam as frutas pelo peixe pescado pelos amigos. Como distração, tocavam o órgão elétrico. “Éramos duas metades de uma laranja”, comentou ela, mais de uma vez, a respeito de seu casamento, ao longo da manhã.

Leia também: Buscando paixão e aventura aos 88 anos, mas sem ingenuidade (artigo de Robert Goldfard, publicado em 7 de janeiro de 2018)

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Lee morreu em decorrência de um câncer do pulmão, em 1996, e, como sua mulher conta, foram suas últimas palavras que mudaram o rumo da vida dela: “Agora é hora de você mostrar seu valor”.

“Quis fazer aquilo de que ele sempre me achou capaz. É o que me faz seguir adiante desde então”, confessa. Ela explica que sempre se interessou pelo bem-estar e a boa forma – já nos anos 70, os Lee faziam limpeza no organismo, preparavam kombucha e misturavam lecitina no cereal –, mas, depois da morte do marido, desenvolveu uma compulsão pela caminhada. “Quanto mais rápido andava, melhor me sentia.”

A carreira atlética começou de verdade semanas depois de ter completado 85 anos. Em 2011, seguindo o conselho do fisioterapeuta, competiu no Australian Masters Games e acabou faturando quatro medalhas. “Fiquei superanimada com os tempos que tinha conseguido e me vi me comparando aos outros competidores, que eram todos mais novos que eu. Quando voltei para casa, o repórter de uma revista local me procurou para perguntar como tinha sido; quando lhe contei dos meus tempos nas quatro provas, ele disse que eu chegara perto do recorde mundial. Achei o máximo e não consegui tirar aquilo da cabeça.”

Desde então, ela não parou mais. Lee atualmente é dona dos recordes mundiais dos 3 mil, 5 mil e 10 mil metros de sua faixa etária (de 90 a 94), se bem que a competição não é lá tão acirrada: tem uma romena de 92 anos chamada Elena Pagu. E só.

Mas Heather Lee sai todo dia disposta a superar Heather Lee. “Eu me tornei muito competitiva comigo mesma. Agora o que me resta é quebrar meus próprios recordes.” Às 8h30 da manhã, segundo o Fitbit da atleta, nós já tínhamos dado 9.206 passos a uma temperatura que se aproximava dos 37°C; ela estava pronta para tomar um café; eu, desesperada pelo ar condicionado.

Talvez o fato de Heather ter começado a praticar a marcha atlética tão tarde tenha sido uma vantagem

Em uma cafeteria próxima dali, falamos sobre aquilo que ela vê como seu propósito de vida: transmitir aos mais jovens a importância de viver bem, mantendo uma dieta saudável e praticando bastante exercício. Ah, sem contar os degraus. “Um dos meus lemas é ‘Vá de escada, nunca pegue o elevador’. Nunca.”

“Gostaria de servir de exemplo para aquelas mulheres que chegam à meia-idade e começam a engordar ou pensam em diminuir o ritmo. A idade não é empecilho para nada.”

Pensei comigo que talvez o fato de ela ter começado a praticar a marcha atlética tão tarde tenha sido uma vantagem, pois seus triunfos futuros vão sempre superar as conquistas passadas. Perguntei a Lee como ela se sentia em relação ao início de 2019. “Este ano vai ser ótimo. Se vai ser melhor que o ano passado? Bom, 2018 para mim foi sensacional.”

Eu ri, pensando nas pessoas que conheço, inclusive eu mesma, que têm pavor do que o ano pode trazer; no entanto, ali estava uma viúva de 92 anos que me apresentou a seus amigos me mostrando uma gaveta de livretos distribuídos no enterro deles. A ela, o que não falta é bom humor e entusiasmo.

“Digo sempre à minha treinadora: ‘Se você me forçar ao limite e eu cair, nem tente me ressuscitar’.” Pergunto se ela gostaria de morrer caminhando. E ela nem pisca para responder. “Não seria maravilhoso?”

Bari Weiss é editora e colunista do “The New York Times”.
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