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Imagem ilustração.| Foto: Pixabay

Neste 28 de fevereiro de 2021 comemoramos dois eventos importantes. O primeiro é o dia mundial das doenças raras, que foi escolhido no último dia de fevereiro pois, a cada quatro anos, ele cai no dia 29 de fevereiro, um dia “raro”. O segundo é o Linus Pauling Day, menos conhecido, e, por “coincidência”, o aniversário de 120 anos do ilustre químico norte-americano, o único ganhador solo de dois prêmios Nobel (de Química e da Paz). Foi o cientista que primeiro descobriu a base genética de uma doença – a anemia falciforme – em 1949.

Eu chamo a atenção para essa data não somente pela coincidência, mas também pelo recente fato histórico da primeira terapia gênica bem-sucedida utilizando o método de edição chamado Crispr–Cas9 – literalmente, um “corta-e-cola” do DNA. Num editorial da revista científica mais bem conceituada da medicina, o New England Journal of Medicine, publicado no fim de janeiro desse ano, a precisão e versatilidade dessa técnica de edição genética – comparada a um processador de texto – foram comprovadas ao corrigir a função de uma proteína de dois pacientes norte-americanos com doenças graves do sangue, que os tornavam dependentes de repetidas transfusões para o resto da vida: a anemia falciforme e a beta-talassemia. São doenças devastadoras da qualidade de vida, que podem levar à morte, se as transfusões não forem feitas regularmente. Elas são mais comuns nos negros e europeus do Mediterrâneo, respectivamente, mas nos asiáticos e hispânicos elas são raras.

Há cerca de dez anos, as pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, ganhadoras do Prêmio Nobel de Química do ano passado, descobriram essa fantástica engenharia da natureza presente nas bactérias para se defenderem de seus mais antigos inimigos: os vírus. Resumindo de modo simplório, algumas cepas de bactérias desenvolveram durante a evolução um mecanismo semelhante a uma charada em seu DNA, embaralhando num palíndromo suas sequências de letras A,T,C e G, de modo que os vírus, ao tentarem decifrá-la, acabam tendo seu material genético “memorizado e cortado” por certas enzimas dessas bactérias, inibindo, assim, a replicação viral, e garantindo sua sobrevivência. As duas pesquisadoras valeram-se dessa inteligência natural para inteligentemente recriar, simplificar e reprogramar esse corta-e-cola genético.

Em pacientes com a anemia falciforme e a beta-talassemia, a anemia grave deve-se a falhas genéticas ou mutações que prejudicam a função da principal proteína do nosso sangue, a hemoglobina, que carrega o oxigênio para todos os tecidos do corpo. Essa proteína mutante torna as hemácias, os glóbulos vermelhos, em uma forma de foice (falciforme), ou muito pequenos, na talassemia. De maneira geral, os pesquisadores que trataram os pacientes, em vez de tentarem consertar o gene da hemoglobina (beta-globina), modificaram um gene regulador que induz a hemoglobina do feto a amadurecer em adulta após o nascimento. Isso permite a produção de mais hemoglobina fetal do que adulta e, assim, as hemácias ficaram mais parecidas com o formato normal – um disco bicôncavo – e fluem melhor no sangue, oxigenando todos os órgãos. Tudo isso foi feito em células-tronco do sangue retiradas (ex vivo) dos pacientes, mantidas em condições rigorosamente controladas, para então serem “curadas” geneticamente antes de voltarem para os seus respectivos “donos”.

Esse estudo histórico foi a prova-de-princípio dessa ferramenta tecnológica emergente, que tem o enorme potencial de tratar as mais de 8 mil doenças raras de causa predominantemente genética, e de melhorar a qualidade de vida e aumentar a sobrevida de tantos doentes “raros” individualmente, mas muito comuns coletivamente.

É mais um alento “oxigenador” de esperança – além das vacinas contra o coronavírus – face a uma realidade sombria e anóxica em que vivemos nos dias de hoje. Certamente, nesse “dia raro”, todos nós, leigos e cientistas, vivos e os que já passaram, comemoramos a vitória da ciência iluminadora sobre as trevas da ignorância, da empatia ética sobre o individualismo egocêntrico.

Israel Gomy é médico geneticista com pós-doutorado pelo Dana Farber Cancer Institute/Harvard Medical School.

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