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| Foto: Apu Gomes/AFP

Eu me habituei a checar as redes sociais assim que levanto, consequência talvez desses tempos modernos. Não tinha dormido bem, e acabei dando uma espiada no telefone por volta das 5 da manhã, esperando ver a continuação da análise das eleições intermediárias, quem sabe alguma notinha charmosa sobre a Cardi B. Já devia ter desconfiado.

Segundo as estatísticas da ONG Gun Violence Archive, houve tiroteios em massa todos os 312 dias de 2018. Viraram ocorrência comum. É uma coisa horrível de se dizer, mas é verdade. E precisamos repeti-la vezes sem conta. Precisamos encarar esse horror de frente, sem desviar os olhos. Vivemos em um país onde há relativamente poucas restrições à posse de armas e nossa tolerância cultural para chacinas parece ser infinita.

Há menos de um mês, visitei o câmpus da California State University Channel Islands, próximo do bar onde ocorreu o ataque de 7 de novembro, e fui recebida por um público profundamente engajado. Fizemos um debate sério e ponderado sobre violência sexual, justiça, trauma e cura. Talvez alguns daqueles alunos estivessem no Borderline Bar and Grill, em Thousand Oaks, fazendo o que universitários costumam fazer: dançando, bebendo com os amigos, se divertindo. Ao ler as notícias na manhã do dia 8, meu peito apertou; entre as descrições dos jovens, falando dos clarões e da fumaça que viram, senti um tom de resignação.

As pessoas tratam a Constituição feito cardápio de lanchonete fast-food, escolhendo quais as emendas invioláveis e quais as descartáveis

De dois anos para cá, a segurança nos meus eventos vem aumentando, inclusive com guardas armados. Às vezes eles têm de estar ali porque eu recebi alguma ameaça, outras porque, sendo negra e cheia de opiniões, o perigo já é implícito. Toda vez que subo ao palco, examino o público com atenção, imaginando se há um homem armado naquele mar de rostos. Não tenho medo dele; estou conformada com a inevitabilidade de vê-lo com uma pistola apontada para mim, para o público, e puxando o gatilho. Não quero me sentir assim. E também não quero que você se sinta.

Em entrevista, o pai de uma das moças que escapou da carnificina do Borderline Bar contou que a filha seguiu as instruções dadas por ele para casos como esse. Demorou um pouco para eu perceber o que ele estava dizendo: estamos criando nossos filhos para se prepararem para esse tipo de atrocidade.

É uma aflição tipicamente norte-americana essa, de uma proliferação de violência armada não nos comover a ponto de tomarmos providências reais para reduzi-la e restringir o acesso às armas.

É também dolorosamente óbvio que não há chacina grotesca o bastante para convencer nossos políticos a peitarem a NRA e os fabricantes de armas: um congressista foi alvejado e ficou entre a vida e a morte; crianças da escola primária Sandy Hook foram assassinadas; frequentadores da casa noturna Pulse foram abatidos; membros de uma plateia em Las Vegas foram dizimados.

Leia também: O controle de armas nos Estados Unidos (editorial de 30 de janeiro de 2013)

Leia também: A falácia dos desarmamentistas (artigo de Irineu Berestinas, publicado em 24 de agosto de 2018)

Em meio a esse horror, nossos líderes pensam e rezam. Os políticos que contam com as doações da NRA fingem preocupação e continuam a receber da associação. O eleitor mantém esse povo no governo, talvez porque não foram seus amigos e familiares os assassinados. Por enquanto. E, mesmo que fossem, não sei se mudariam o voto. As pessoas tratam a Constituição feito cardápio de lanchonete fast-food, escolhendo quais as emendas invioláveis (a Primeira e a Segunda), e quais as descartáveis (qualquer uma que garanta os direitos civis de alguém que não o homem branco).

O roteiro que se segue a esses ataques infelizmente já se tornou familiar: bandeiras a meio mastro, palavras vazias de apoio... o que me gela até os ossos é a eloquência relativamente calma dos sobreviventes falando aos repórteres. Ninguém parece particularmente surpreso por ter sobrevivido. São capazes, imediatamente depois do trauma, de articular suas experiências. O fato é que conseguem fazê-lo porque já viram ser feito antes.

Como vamos mudar esse estado de coisas? Como convencer um número suficiente de pessoas de que já passou, e muito, da hora de tomarmos uma ação radical?

Temos de eleger políticos que proíbam fuzis de assalto e, pelo menos, sancionem leis que exijam uma verificação de antecedentes federal e rigorosa para a posse de armas. Mas a verdade que isso aí não é radical; é o mínimo aceitável e, graças à lei californiana, o atirador só conseguiu usar um revólver. A tragédia com 13 mortos poderia ter sido muito pior.

Leia também: O desarmamento como um primeiro passo (artigo de Luiz Fernando Valladão, publicado em 24 de outubro de 2017)

Leia também: Por que o sistema público de saúde mental não consegue impedir massacres (artigo de Amy Barnhorst, publicado em 22 de fevereiro de 2018)

No fim de setembro, fui a um clube de tiro com meu irmão, que é fã de armas. Passamos uma hora atirando e ele me explicou os méritos da cada uma. Usamos óculos de proteção e, embora não tivesse sido a primeira vez que atirava, ele reviu comigo o protocolo de segurança. Antes mesmo de entrar, assistimos a um vídeo sobre segurança – e, do momento em que pusemos o pé ali dentro até a hora de sairmos, fomos constantemente lembrados do perigo que elas representam. Senti cada arma pesada, quente. Não demorou muito para que o espaço à nossa volta ficasse impregnado com o cheiro do óleo e da pólvora. Atiramos em alvos de metal e de papel. Senti certa satisfação com meu desempenho razoável. Deu para entender o fascínio de ter tamanho poder na palma da mão. E também compreendi a responsabilidade de empunhá-la. Fiquei deslumbrada. Tão fascinada que queria ter uma só para mim. Entretanto...

Hoje, peguei um bebê de 4 meses no colo. Gracioso, forte, curioso. Ainda tem aquele cheirinho doce, de novinho. Bastaram alguns minutos para eu esquecer todas as coisas horríveis. Esqueci o homem armado, as 12 pessoas que ele matou e as que feriu. Esqueci o homem armado que entrou em um estúdio de ioga e começou a atirar. Esqueci o homem armado que entrou em um mercadinho e começou a atirar. Esqueci o homem armado que entrou em uma sinagoga e começou a atirar. E aí olhei para o rostinho do bebê, para o sorriso que escancarou pra mim. E me lembrei de todas as coisas horríveis. Deu para entender a responsabilidade de segurar uma criança. Fiquei deslumbrada. E percebi que, por mais horrorosas, comuns e inevitáveis que sejam as chacinas, não podemos fazer nada. Encare o terror. Sinta-o. Com tanta intensidade a ponto de fazê-lo agir.

Roxane Gay é professora associada da Universidade Purdue e autora de “Hunger”.
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