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Como um trovão irrompendo na serenidade de um belo dia, Voltaire denunciou um caso de injustiça que dizimou uma família e marcou a sociedade francesa nas últimas décadas que precederam a Revolução de 1789. Um caso seminal de julgamento e condenação de um inocente, sob o ardiloso manto da justiça, motivado pela intolerância, pelo fanatismo religioso e pelo clamor das massas que ocupavam as ruas. Nesse solo de horrores, onde muitas vezes prevalece a superstição em prejuízo da razão, o filósofo iluminista lança um forte manifesto em defesa da verdade, da tolerância universal e da liberdade individual.

A fim de evitar mais episódios como esse, a defesa da tolerância foi a bandeira levada adiante por Voltaire e por todos aqueles que decidiram seguir seu exemplo em favor da verdade. Diferentemente do que pensa o senso comum, tolerância, nos termos utilizados pelo filósofo, não significa atitude indiferente ou lassa, tampouco submissão ou obediência cega, mas tão somente respeito universal entre todos os homens, gregos ou romanos, cristãos ou muçulmanos, católicos ou protestantes, hinduístas, xintoístas ou budistas, judeus ou não.

Aceitar as diferenças é condição fundamental para o estabelecimento da convivência social pautada pela concórdia plena

Tolerantia, do latim, significa flexibilidade ou capacidade de aceitar uma determinada situação não favorável ou contrária a uma regra moral ou religiosa previamente estabelecida pelos acordos comunitários. Tolerância diz respeito, sobretudo, ao exercício indulgente de suportar as diferentes opiniões emitidas por um interlocutor que conserva um ponto de vista dissemelhante do comum. Aceitar as diferenças é condição fundamental para o estabelecimento da convivência social pautada pela concórdia plena. Nas palavras de Voltaire, “a tolerância é o apanágio da humanidade” , a primeira lei da natureza, um atributo fundamental, indispensável e inerente a todo homem dotado de razão.

Ainda que a natureza humana resista com insistência em obedecer esse atributo, a tolerância, como virtude, justifica-se na própria condição humana: equivocada, fraca e insensata. Diante dessa triste realidade, a alternativa mais plausível consiste em reconhecer essa condição limitada e perdoar uns aos outros mutuamente, o que propiciaria relações mais saudáveis e cordiais, que são princípios de civilidade e garantia de vida social.

João Pereira Coutinho: Brincando com bonecas (publicado em 7 de julho de 2018)

Leia também: Em briga de marido e mulher devemos, sim, meter a colher (artigo de Mariela Moni Tozetto, publicado em 6 de agosto de 2018)

Ainda assim, existem aqueles que argumentam, com eloquência invejável, em favor de um suposto “direito humano à intolerância”, o que seria insensato crer, uma vez que o que a natureza pede e ensina é sempre o contrário. O direito humano só pode se fundamentar no direito natural, cujo princípio eterno, universal e imutável se consolida em uma máxima negativa, sendo sempre o mesmo em toda a terra: não faça o que não gostaria que lhe fizessem.

Por óbvio, aquele que deseja que suas opiniões particulares sejam respeitadas deverá, com maior diligência, empenhar-se em respeitar o juízo alheio. De igual maneira, é perfeitamente aceitável discordar das palavras de um conhecido, e ainda assim continuar respeitando seu direito legítimo de expressão. A desaprovação não acarreta a exclusão nem a perseguição. Por isso, “o direito à intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós extirpamo-nos por pequenos parágrafos” , que muitas vezes não fazem qualquer sentido.

Edimar Brígido é doutor em Filosofia.
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