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26 de julho foi o prazo final dado por um juiz distrital, no mês passado, para que o governo Trump promovesse o reencontro das crianças separadas dos pais na fronteira por agentes federais. Acontece que não havia como a Casa Branca cumprir essa exigência: segundo relatos, centenas de pessoas não vão poder ver os filhos porque as autoridades não têm condições de localizá-las ou já as deportaram.

Essa catástrofe não é apenas resultado de uma política deliberadamente cruel, implementada com a maior incompetência, embora seja basicamente isso. Essas famílias separadas são as vítimas mais recentes da “tolerância zero”, uma política falaciosa que atinge aqueles que são seu alvo, por mais vulneráveis que sejam.

Há pelo menos uma geração, os legisladores norte-americanos se mostram viciados nessa filosofia, como se fosse a solução para todos os males sociais: criminalidade, drogas, abuso sexual, até crianças malcomportadas.

Comecemos pela criminalidade: nos anos 80 e 90, os governos federal e estadual promoveram uma verdadeira farra na Justiça criminal, expandindo os códigos, principalmente nas “guerras” contra a violência e as drogas, adotando a postura da tal tolerância zero. O resultado? Cerca de 70 milhões de norte-americanos com ficha policial, número que se iguala ao de pessoas com ensino superior no país, de acordo com o Centro Brennan pela Justiça. Continuamos sendo a nação que “encarcera uma fatia maior da própria população que qualquer outra no mundo”, segundo relatório recente do Centro de Pesquisa Pew – e isso apesar do fato de a criminalidade nos EUA estar a um nível baixo atualmente.

A tolerância zero, porém, não fez parte só do sistema judicial criminal: sob as bênçãos federais, entranhou-se nas escolas. E, entre outros, afetou uma garota de 14 anos de Ohio que, em 1996, deu um comprimido de Midol para uma amiga que estava morrendo de dor, com cólicas menstruais. A direção da escola descobriu e a menina foi suspensa por “tráfico”. Sendo ela negra, a família entrou na Justiça, alegando discriminação racial, e acabou ganhando o caso. Entretanto, quem acompanha a implementação e as consequência dessa prática radical documentou a desproporção absurda com que os negros e pardos acabam punidos por ela.

A tolerância zero também invadiu as corporações

Nesses 22 anos desde então, outros incidentes absurdos como esse se tornaram rotina na vida escolar – como o caso de 2015, em que um garoto de 11 anos da Virgínia passou pela Justiça juvenil e foi suspenso durante quase um ano inteiro porque tinha uma planta na mochila que a direção da escola achou que fosse maconha. Mesmo depois que os testes conformaram que era bordo, a suspensão foi mantida porque a folha lembrava a da Cannabis, e a polícia estadual exigia ser notificada pelas instituições de ensino, com a possibilidade de expulsão do aluno pela posse de drogas “de imitação”.

A revolta generalizada resultante de situações como essas levaram a algumas reformas, como no caso do Texas. O problema é que, uma vez adotada a filosofia da tolerância zero, é complicado desfazer ou brecar o incentivo burocrático da punição indiscriminada.

Este ano, de acordo com um relatório da Texas Appleseed e outros grupos de interesse público, mais de 1,2 mil crianças foram denunciadas no estado por “ameaças terroristas”, o que tem potencial de delito. Uma delas foi a do garoto deficiente de 12 anos que imitou o formato de uma arma com os dedos e fingiu atirar em criaturas invisíveis no corredor. Foi detido.

Geralmente, no início de uma campanha de tolerância zero, os responsáveis por ela prometem que vão eliminar tudo o que há de pior – narcotraficantes, líderes de gangues, predadores sexuais, assassinos –, mas, com o tempo, fica claro que não há muitos transgressores deste nível. É quando a definição do intolerável começa a se expandir, permitindo que os políticos e outros patrulhas morais aleguem estar “limpando” a sociedade, eliminando aqueles que cometem qualquer tipo de escorregadela. Os que exigem uma resposta mais proporcional, gradual e individualizada a problemas tão complexos são criticados, rotulados de lenientes em relação às ameaças que nos afligem.

Leia também: Vergonha americana (editorial de 21 de junho de 2018)

Leia também: Para a polícia de Chicago, qualquer garoto negro é bandido (artigo de Tamar Manasseh, publicado em 30 de dezembro de 2017)

Um exemplo típico desse tipo de expansionismo é o registro do abuso sexual, que começou há mais de 20 anos, após vários crimes infantis medonhos cometidos por predadores em série; hoje, cerca de 900 mil pessoas fazem parte dessa lista. Pouquíssimos, porém, são parte da categoria que estimulou seu surgimento.

Há o caso do rapaz de 18 anos, de New Hampshire, que perguntou a um garoto de 15 qual era seu nível de conhecimento de sexo. Não aconteceu nada entre os dois, mas os adultos souberam da conversa – e, porque o mais velho fez o questionamento via computador, seu nome ficará na tal lista negra até o fim dos tempos. E tem também o caso ocorrido no Missouri, de um deficiente mental molestado por um vizinho mais novo – que convenceu o homem de 26 anos, que morava com os pais, a se expor para uma menina menor de idade. Os dois foram detidos, mas o mais velho foi fichado e continua até hoje. Por causa da condenação, não pode mais participar da Olimpíada Especial, nem limpar as mesas do restaurante local, como fazia. Os gastos judiciais acabaram com as parcas economias que seus pais tinham.

Apesar da evidência maciça de que a política de tolerância zero aflige os inocentes e inofensivos, estamos tão habituados a pensar nesses termos que, quando surge uma nova questão, a reação é automática. Algumas feministas, inclusive eu mesma, levantaram essa preocupação em relação ao #MeToo. Tememos que a abordagem radical minasse a autoridade moral do movimento, destruindo a carreira dos acusados antes que as alegações fossem analisadas com frieza e justiça e que se fizesse a distinção entre uma ampla gama de comportamentos condenáveis.

Os que exigem uma resposta mais proporcional e gradual a problemas tão complexos são criticados

A tolerância zero também invadiu as corporações, assumindo o formato de demissões por “discurso ofensivo”. Você pode até concordar que Roseanne Barr mereceu ter sido demitida por causa do tuíte explicitamente racista sobre Valerie Jarrett, mas também deve condenar aqueles que perderam o emprego por muito menos.

Em dezembro passado, um executivo da Netflix chamado Andy Yeatman foi procurado, enquanto assistia à partida de futebol da filha, por uma mulher que lhe perguntou por que um ator de uma das séries do canal, acusado de estupro, não tinha sido despedido. Yeatman não tinha relação nenhuma com o seriado e, para encerrar a conversa, disse que essas coisas eram levadas muito a sério na Netflix, mas talvez nesse caso as acusações tivessem sido levianas. Na mesma hora se arrependeu do que disse, mas aí já era tarde. A moça se revelou como vítima do predador e, ainda no campo, Yeatman recebeu o telefonema de um repórter. Dias depois foi despedido.

Não há nada como as vozes de crianças aterrorizadas, os relatos das condições deploráveis dos centros de detenção e a percepção de que algumas famílias jamais voltarão a se reunir para causar uma revolta nacional em relação à postura do governo federal. O que ocorreu não foi apenas um ultraje moral, mas um desperdício monumental de verbas. Segundo a revista Politico, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos “torrou pelo menos US$ 40 milhões nos últimos dois meses com a manutenção e a reunificação de crianças imigrantes”.

Para impedir que outras injustiças como essas voltem a ocorrer – e para corrigir as que continuam em andamento –, temos de adotar a tolerância zero à tolerância zero.

Emily Yoffe contribui na edição do “The Atlantic” e escreve para o “Highline”, do “Huffington Post”.
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