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O filme integral ainda não apareceu; deveria chamar-se Inocência dos muçulmanos, mas foi postado no YouTube com o título de Trailler do filme de Maomé. Com 14 minutos, rodado precariamente num fundo de quintal perto de Hollywood, sem cenários, com atores com barbas postiças e atrizes enroladas em lençóis, mal dublado, teria custado US$ 100 mil. O responsável seria um notório charlatão egípcio-americano de origem copta. Não se confirmou a origem judaica ou israelense do "produtor" Steve Klein, cristão, ativista de direita.

Resposta discreta – 1,5 milhão de visitas – se comparada com vídeos reproduzidos 700 milhões de vezes. E, no entanto, este trambique videográfico está provocando um novo incêndio no mundo islâmico, do Magreb ao Paquistão, com a morte de quatro diplomatas americanos na Líbia recém-democratizada e ataques às embaixadas no Egito e no Iêmen. A bola de neve poderá até influir na próxima eleição presidencial, caso o simplismo do republicano Mitt Romney o leve a explorar o episódio como mais um erro da política externa de Barack Obama.

Trailer novo, enredo antigo: em 30 de setembro de 2005, há sete anos, 12 caricaturas de Maomé publicadas num jornal conservador dinamarquês deflagraram no mundo islâmico a primeira cruzada mundial antiocidente. Seis anos depois, em 1.º de abril de 2011, o pastor de uma microscópica comunidade evangélica da Flórida levou adiante suas ameaças de queimar um exemplar do Alcorão, diante de um punhado de fiéis. Resultado: em Kabul, no Afeganistão, a turba enfurecida assassinou sete funcionários da ONU engajados em projetos humanitários.

Hillary Clinton considerou o vídeo repulsivo, mas explicou ao mundo islâmico que a Constituição americana consagrada em 1788 garante a liberdade de expressão, enquanto o recém-empossado presidente egípcio, Mohamed Morsi, em Bruxelas, na sua estreia no cenário internacional, clama aos EUA para acabar com "um crime contra a humanidade".

O grupo Google, proprietário do YouTube, rapidamente retirou o infame trailler da rede em diversos países islâmicos, como fez anteriormente na China para aplacar as autoridades incomodadas com o teor subversivo que circula em suas redes ditas sociais. No Google americano qualquer embargo seria impensável. Mesmo mascarado como "regulação".

O impasse tem cores trágicas: a democracia até agora não ajudou a sociedade americana a tolerar diferenças. O rancor contra o islamismo e contra os vizinhos latinos são apenas dois exemplos recentes de uma sociedade ainda enfezada, ressentida, mesquinha, apesar dos 224 anos de vigência de uma Constituição democrática. Um negro na Casa Branca não conseguiu eliminar velhos preconceitos.

As primeiras doses de democracia também não ajudaram a Líbia nem o Egito a libertar-se da violência e do autoritarismo. A tão decantada "Primavera Árabe" acabou com anquilosadas ditaduras, mas não soube preservar o laicismo nelas embutido desde os anos 20 do século passado, quando Kemal Ataturk tentou modernizar os escombros do Império Otomano.

A tecnologia é universalista, tende inevitavelmente para aberturas; é impossível limitar os avanços, sobretudo quando se desenvolvem em Estados livres. O fanatismo religioso é inexoravelmente fechado, discricionário. Só uma democracia capaz de respeitar a dignidade de todos os crentes – e dos descrentes – será capaz de evitar a escalada de uma nova guerra santa.

Alberto Dines é jornalista.

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