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| Foto: Nicholas Kamm/AFP

“Nunca se mente tanto como antes das eleições, durante uma guerra e depois de uma caçada”, disse Otto Von Bismarck. Com raras exceções, a campanha eleitoral, em qualquer lugar do mundo, é caracterizada pela arte da dissimulação. Fala-se o que melhor cai no ouvido, sobe à mente e penetra no coração do eleitor. Finalizado o pleito, o vencedor faz o que disse que não faria, não faz o que disse que faria ou simplesmente faz o que é possível fazer, dentro de suas convicções, princípios e orientações partidárias (quando as há), conveniências e ganâncias pessoais, alianças válidas ou espúrias, ou o que o Parlamento (na divisão típica de poderes) permite que seja feito.

Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, existem apenas dois grandes partidos que tradicionalmente se revezam no poder com princípios e valores bem nítidos e diferentes: os republicanos defendem, em síntese, a liberdade de mercado e pouco ou menor investimento em áreas sociais. Há, no partido, os conservadores fiscais (defensores do Estado mínimo) e os conservadores sociais, divididos em várias alas, como a direita cristã e o Tea Party (seu braço mais radical), que pregam a chamada “defesa da moral e bons costumes”. Já os democratas defendem uma maior participação do Estado e um liberalismo social, caracterizado pela maior tolerância ao multiculturalismo social, étnico e religioso. As cartas estão à mesa e conhecidas pelo cidadão. Portanto, sob a ótica do eleitor americano, o partido ao qual pertence o candidato é tão – ou mais – importante que o próprio candidato e suas características pessoais.

Por que Donald Trump ganhou? Eis algumas reflexões neste clima ainda de day after: Em primeiro lugar, há décadas tem havido uma alternância no poder entre os partidos, após dois sucessivos mandatos, e Obama, democrata, está terminando o segundo mandato. Além disso, há uma exaustão do político tradicional, não só nos EUA. Consequentemente, emerge um outsider, um não político, um estranho no ninho, com fama de empresário de sucesso, com cacoete de posições firmes e aura de negociador vitorioso. Não se pode esquecer da concorrente: Hillary Clinton, segundo Trump, representava o que há de antigo e corrupto do establishment; está na política há décadas, desenvolveu um papel ativo na gestão catastrófica de Obama, foi responsável pelo atrapalhado e humilhante episódio de Bengazi, na Líbia (com a morte do embaixador americano), sem contar a polêmica dos e-mails. Embora não tenha ocasionado nada de errado, o fato de usar e-mails pessoais para uso oficial faz – e fez – tremer ainda mais a confiança do eleitorado.

Um ponto crucial que muito pesou para a presença massiva de eleitores republicanos às urnas é a formação da Suprema Corte

Na política externa, os democratas, segundo a tônica trumpeana, passaram um perfil de fracos ou submissos enquanto os republicanos aplaudem a coragem e determinação de Vladimir Putin em invadir a Ucrânia e se apossar da Crimeia, sem se importar com o que diz o mundo. Trump, na campanha, quis passar a imagem de um “Putin com topete”. Os EUA são os maiores contribuintes de alianças militares e, segundo Trump, ficam reféns dos outros; o governo atual assiste “cordeiramente” às ações monstruosas do Estado Islâmico e se mostra acéfalo no combate ao terrorismo que “seguramente” vem de fora. No campo econômico internacional, Trump diz que o país se ajoelha às alianças comerciais e tratados de livre comércio, sem o devido benefício econômico to the American people. Países como a China roubam os empregos e levam à ruína empresas americanas.

No campo social, o republicano acha que o país assiste a uma “contaminação étnica e cultural”, com inaceitável condescendência a imigrantes ilegais e muçulmanos radicais; aqueles, sequestradores e estupradores; estes, terroristas. Ainda na lente civil e religiosa, a permissão para o casamento homossexual destroi valores básicos e a manutenção do direito ao aborto deve ser revista. O discurso dos republicanos, debaixo das rajadas bufônicas de Trump, recomenda que sejam retomados os valores tradicionais inerentes e provenientes da Wasp (White, Anglo-Saxon Protestant) americana.

Para boa parte dos republicanos, o multiculturalismo atual trouxe uma bagunça, o país não tem um comandante forte, se encontra em frangalhos no âmbito doméstico e passivamente enfraquecido no âmbito internacional, e ainda gasta trilhões com problemas e causas dos outros. Nesse cenário ecoou a voz de Trump: está na hora de os Estados Unidos serem dos Estados Unidos. Para robustecer sua imagem de durão, criou um clima de ataques pessoais (Hillary merece ir para a cadeia), de divisão do país e de promessas sedutoras típicas de um ator do setor privado para implantação na administração pública. E colou!

Aliás, um ponto crucial que muito pesou para a presença massiva de eleitores republicanos às urnas é a formação da Suprema Corte. Trump irá nomear, logo no começo, um novo juiz e, muito provavelmente, outros dois ao longo de seu mandato. Isso tem uma relevância enorme, dado o papel da Suprema Corte não só de interpretar a Constituição, mas de moldar a sociedade americana para as futuras gerações. A possibilidade de Hillary de consolidar o perfil da corte era simplesmente inaceitável para os republicanos, independentemente da ala interna e, pasmem, do candidato escolhido. Consequentemente, surgiu um contingente enorme de republicanos que, embora envergonhados com o discurso agressivo e destemperado de Trump, nele votaram para evitar o mal maior. Em resumo, Trump ganhou porque soube fabricar e interpretar o anseio de uma América dividida, aproveitando-se dos erros e rejeição a Hillary. Mas, se ganhou, merece aplauso, ou pelo menos reconhecimento, malgrado protestos que surgem nas ruas na base do “Trump, you are fired”. Não é por aí!

O que esperar de Trump? Inicialmente, que tenha equilíbrio: não é mais um candidato a quem é permitida uma retórica de sauna masculina; tornou-se o homem mais poderoso do mundo. Todas as suas palavras serão analisadas urbi et orbi e poderão desencadear disenterias na economia mundial, aumento de ódio, ou mesmo uma escalada bélica e nuclear por líderes declaramente fanfarrões e sistemas sabidamente radicais. Ainda, que monte um ministério extremamente competente, com pessoas não só afinadas com os valores republicanos positivos (menos Estado, mais investimento em infraestrutura e menos impostos), mas também com assessores com imenso conhecimento de história e cultura, com serena e sólida noção de estratégia geopolítica internacional. Que entenda – no primeiro minuto – que negociar no plano público é bem diferente de negociar com proprietários de terrenos para empreendimentos imobiliários. Que reconheça que indústrias tradicionais americanas fecharam e seus funcionários perderam empregos não por causa da frouxidão da política atual, mas sim pelo avanço tecnológico e da robótica.

E mais: que, se ele se acostumou a ganhar do “outro”, seus colegas estrangeiros também querem o mesmo. Que tenha mais respeito à diferença e ao direito das minorias: no lugar de construir muros, que construa pontes. E por fim, que saiba substituir a retórica simplista e chula que não condiz com o que se espera daquele que exerce o papel de principal líder global. Fica a Trump o bônus e, sobretudo, o ônus de acalmar o mundo. Como o fará é a grande questão. Já quando fará, disso não há dúvidas: deve ser agora e durante todo o seu mandato. Mas, sr. Trump, fique certo de que a torcida daqueles que, como eu, não só não torceram pela sua vitória como erraram feio no prognóstico é imensa para que sua gestão seja coroada de êxito. Se assim for, ganham os Estados Unidos e ganha o mundo. Aos democratas, resta a lição do Henry Ford: “o insucesso é apenas uma oportunidade para recomeçar com mais inteligência”.

Mauricio Gomm Santos é advogado.
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