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Morador caminha em Kulusuk, na Groenlândia
Morador caminha em Kulusuk, na Groenlândia| Foto: Jonathan NACKSTRAND/AFP

Passei os últimos meses conduzindo pesquisas na espetacular costa ocidental da Groenlândia. Indo de um lugar para outro, o que chamou minha atenção não foram as montanhas cobertas de neve nem os fiordes cor de safira, mas sim as bandeiras vermelhas e brancas. O símbolo local enfeita barcos, casas, camas elásticas, jaquetas, blusas de lã, bonés. Até os corredores dos supermercados e vendinhas são decorados com bandeirolas. A mensagem é clara até para gente como eu, que não fala a língua groenlandesa: a ilha tem orgulho de sua identidade e de sua autonomia. E deve ter mesmo; afinal, elas foram conquistadas a duras penas.

A sugestão da venda do território aos EUA, na semana passada, foi corretamente entendida – por todos, menos pelo presidente norte-americano – como uma piada, ainda que de mau gosto; já o que não ficou bem claro foi como os devaneios delirantes de Trump marcam mais um capítulo na longa história da Groenlândia e de seu povo, que são vistos simplesmente como um recurso a ser explorado pelas grandes potências. E essa atitude subjacente continua mais presente hoje do que nunca.

A colonização dinamarquesa moderna da Groenlândia começou com o que hoje poderia ser visto como uma piada. Em 1721, o missionário Hans Egede convenceu o rei dinamarquês e os mercadores a bancar uma expedição até lá, porque ele queria ir atrás dos vikings perdidos que ainda não tinham se convertido ao protestantismo.

A maioria das quase 60 mil pessoas que vivem na Groenlândia, das quais 88% são inuits, continuam marcadas pelos efeitos negativos do período colonial

Na verdade, os últimos vikings da Groenlândia tinham morrido em algum ponto do século 15, deixando a maior ilha do mundo para o povo thule, ancestral dos inuits locais atuais. Assim, Egede, sem vikings católicos para converter, passou a identificar outros alvos para seus esforços proselitistas; ao mesmo tempo, sua Bergen Greenland Company encontrou recursos naturais em abundância para explorar. Até 1774, os mercadores trocavam produtos europeus por matérias-primas groenlandesas, incluindo gordura de baleia, pele de foca e presas de narval, em postos ao longo da costa.

O Estado dinamarquês então assumiu o controle e, em 1776, concedeu ao seu departamento comercial, o Royal Greenland Trading Department, monopólio sobre tudo que entrava na ilha e saía dela. Para conseguir manter exclusividade sobre os recursos, alegou estar "protegendo a cultura local das influências corruptas externas". Sob a mesma justificativa, incentivava os nativos a manter ocupações como a caça e a pesca. Para completar, levou também a cabo o que chamou de missão "civilizatória", que incluía conversões forçadas ao cristianismo, a supressão da língua e das tradições e a destruição das estruturas comunais existentes. De acordo com a lógica dinamarquesa prevalecente, os groenlandeses eram ingênuos e infantis, necessitados de proteção e incapazes de se autogovernar.

Essa política persistiu até a Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas invadiram a Dinamarca e os funcionários públicos na Groenlândia declararam-na território autônomo. Eventualmente, as ameaças recebidas da Noruega levaram a ilha a aceitar ajuda dos EUA. Depois da guerra, interessados em uma parte das riquezas naturais e de olho em suas vantagens geopolíticas, os norte-americanos se ofereceram para comprá-la por US$ 100 milhões em ouro. A Dinamarca não só rejeitou a oferta como oficializou sua autonomia, transformando-a em um condado oficial, ou "amt", com representação no Parlamento.

A subsequente "modernização" ou "dinamarquetização" da ilha, durante as décadas de 50 e 60, causaram mais danos. A iniciativa da Dinamarca de industrializar a pesca do bacalhau exigia populações concentradas, e não caçadores dispersos – resultando na transferência forçada dos nativos, na urbanização rápida e em um mercado de trabalho restruturado. Os dinamarqueses se mudaram para a ilha para administrar o comércio, passando de 5,2% da população em 1950 para quase 20% em 1975. De acordo com a nova legislação, os funcionários públicos groenlandeses só poderiam receber 85% do salário de um dinamarquês na mesma função. Muitas famílias foram separadas; em alguns casos, as crianças foram enviadas à Dinamarca para estudar. Aumentaram os índices de suicídio, alcoolismo e violência.

Nas últimas quatro décadas, os ilhéus vêm se esforçando para recuperar sua autonomia: em 1979, a Groenlândia ganhou leis próprias e, em 2008, seus cidadãos votaram pelo autogoverno em um referendo público. Hoje, a Groenlândia controla seu sistema legal, sua polícia, suas questões internas e seus recursos naturais. O groenlandês substituiu o dinamarquês como língua oficial. Sob as leis internacionais, os groenlandeses são reconhecidos como um povo com identidade própria. A Dinamarca ainda controla as relações exteriores e a defesa, mas não poderia vender a ilha nem que quisesse. Em pesquisa recente conduzida pelas Universidades da Groenlândia e de Copenhague, mais de dois terços dos groenlandeses querem se tornar independentes no máximo em 20 anos.

Em 2014, o governo local, chamado Naalakkersuisut, estabeleceu uma comissão de reconciliação para investigar as consequências persistentes do colonialismo. Após três anos, o comitê concluiu que a maioria das quase 60 mil pessoas que vivem na Groenlândia, das quais 88% são inuits, continua marcada pelos efeitos negativos do período colonial; ao mesmo tempo, também concluiu que elas não querem mais ser vistas simplesmente como vítimas.

A mancada diplomática de Trump com um aliado por causa da suposição de compra de uma terra que nunca esteve à venda é, de fato, absurda, mas reflete uma realidade sombria: a Groenlândia, uma ilha de importância estratégica e rica em recursos, foi colonizada há 300 anos por empresários imperialistas racistas que consideravam os nativos um bando de ingênuos incapazes de se autogovernar. O fato de essa mesma Groenlândia voltar a ser discutida hoje, e da mesma forma, ainda que não seriamente, revela que essas forças continuam presentes no mundo de hoje – e o pouco progresso que fizemos para combatê-las.

Matthew H. Birkhold é professor assistente de direito e literatura germânica na Universidade Estadual de Ohio.

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