• Carregando...
 | /Wikimedia Commons
| Foto: /Wikimedia Commons

O mundo literário comemorou, neste começo de 2019, os 100 anos de nascimento de J. D. Salinger, figura das mais impactantes da literatura moderna. No Brasil, infelizmente, a efeméride tem passado em brancas nuvens, com injustificável descaso de jornais e revistas. Falecido em 2010, um dos mais cultuados autores norte-americanos depois de Ernest Hemingway, o escritor é pai de Holden Caulfield, a personagem central de O apanhador no campo de centeio, de 1951, obra tão marcante que o rotulou como autor de um só livro.

Quanto a Caulfield, tratava-se apenas de aborrecente padrão, com quem, por razões insanas, todos se identificavam. A partir de matéria-prima pouco original – basta lembrar os heróis imberbes de Goethe, Hesse ou Dickens –, The catcher in the rye tornou-se clássico da literatura sem fronteiras, semeando muitas inquietações. O segredo parecia simples: meros contornos narrativos a devaneios psicológicos importantes, no sentido utilizado em psiquiatria, quando com delicadeza se quer dizer graves e preocupantes. Isso chegou a originar o rótulo de ser o livro “maldito”, nocivo à saúde mental e ao establishment. Em suma, tudo quanto poderia aspirar um grande autor para uma grande obra.

A personalidade reservada e mística acabou por afastá-lo das bajulações e festejos mundanos

Como insatisfeito serial, resmungão e desgostoso de tudo, desde a condição humana até a própria efervescência hormonal, clichês inevitáveis de tempo da vida, Caulfield não gostava dos mais velhos, de seus códigos e de seus embustes, posto que destino inexorável dos sobreviventes que todos somos.

Apesar do aparente formato banal e simplório do livro, Salinger era um nova-iorquino refinado e diferenciado. Poliglota e humanista, fluente em francês e em alemão, consumidor voraz de literatura europeia e oriental, viveu plenamente seu tempo, tendo combatido na Segunda Guerra Mundial, o que iria marcar suas futuras opções filosóficas. Apesar do que sabemos, muito de sua vida ainda permanece em mistério. A personalidade reservada e mística acabou por afastá-lo das bajulações e festejos mundanos. Avesso à publicidade, como o nosso Dalton Trevisan, o que tinha para dizer estava em sua obra. Nem fotografias constavam de suas contracapas, como era de praxe, a reforçar a convicção de que o autor não importava, e sim o que escrevia, sem iludir-se com a paixão corrosiva da fama.

Francisco Escorsim: Carta de amor aos livros (e de morte ao mercado editorial) (publicado em 7 de dezembro de 2018)

Leia também: O Brasil e a sua inaptidão para os livros (artigo de Roosevelt Colini, publicado em 1.º de julho de 2018)

No Brasil, o texto recebeu antológica tradução apenas em 1960, porém das mais felizes, começando pelo corajoso título, sem invencionices – ao contrário do que ocorreu em versões europeias e na portuguesa, em especial: Uma agulha no palheiro, pasmem –, aqui elaborada com a percepção e a dicção correta dos então jovens diplomatas Jorio Dauster, Álvaro Alencar e Antônio Rocha.

Se por um lado, como lembra Dauster, em mensagem pessoal, “pena o sucesso do Apanhador ter ofuscado o resto da obra, em particular seus Os nove contos, alguns dos quais excepcionais como ‘Banana Fish’ e ‘Esmé’.”, por outro, como agora ecoa em seu centenário, é extraordinário que J. D. Salinger não tenha precisado de muito para imortalizar-se: bastou apenas um livro e uma personagem inefável, que não cabe em palavras, com sentimentos universais e de fácil compreensão.

Jorge Fontoura é professor e advogado.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]