• Carregando...

Criar conceitos ou escrever verbetes para uma enciclopédia deve fazer bem para a cabeça. Qual o conceito de calçada? De poste? De orquestra? De árvore? Tente e verá como a brincadeira é prazerosa. Lembre que conceito não é a mesma coisa que descrição; vale mais relatar a função daquilo que você tenta conceituar que relatar a sua forma. Tente e divirta-se. Qual o conceito de cidade?

Há vários, pois, ao elaborar um conceito, expresso uma visão própria de meu mundo pessoal. Para aquele que peregrina no deserto, cidade é um local onde se encontra água e proteção. Eu digo que cidade é um fenômeno físico, constituído por uma massa de construções feitas pelo homem e que se submete a imposições diversas, tais como as culturais, legais, econômicas, naturais e algumas outras.

Da especificidade de tais imposições e da forma concreta da resposta surge uma cidade e não uma outra. Avançando ainda mais neste conceito, poderia dizer que cidade é essa mesma massa de construções dispostas segundo uma complexa divisão de propriedades. Nós moradores de uma cidade somos uma comunidade (feliz, muito feliz ou nem tanto); todavia, nossas relações são sempre marcadas por limites de direitos, ora mais, ora menos flexíveis.

No caso das cidades brasileiras, quando do limite de nossas propriedades privadas, a flexibilidade é desejadamente muito definida. Salvo o ladrão ou o invasor, na minha casa ou no meu terreno ninguém entra sem convite. Já no caso dos espaços públicos, que deveriam ser de todos, parece sempre prevalecer a lei do mais forte. Como conceituar, ou qualificar a palavra "todos"? Digo que é algo que não existe, ou então um conjunto de pessoas cujas características não podem ser resumidas num único adjetivo, expressão ou desejo.

Mas e então? Como, por exemplo analisar um pedido de evento em espaço público? A prefeitura que se vire para ao menos se aproximar desse conceito, fazendo com que o uso desses espaços implique o mínimo possível em risco de desrespeito ao direito individual. Na teoria, fica-se numa posição confortável e tudo fica fácil.

Vejamos agora no dia a dia da cidade. Uma igreja, um partido político ou um artista requer a utilização de um espaço público aberto para celebrar algo: qual o parâmetro que deve ser adotado para autorizar o uso requerido? Metodologicamente, deveríamos primeiramente excluir os extremos: negar ou autorizar automaticamente é radical e, portanto, errado. Um segundo parâmetro é a origem do pedido: instituição pública, privada ou entidade civil que se acredita bem-intencionada (defesa do meio ambiente, lazer, cultura, religião)? No primeiro caso, o aval é inerente; no segundo, jamais deveria ser anuído; no terceiro, vale sempre uma desconfiança. Manifestações espontâneas da população devem ser sempre bem-vindas.

Um outro parâmetro é matemático e ensaiado a seguir. Em termos brutos, ou seja, se nos fosse permitido pisar sobre canteiros, subir em árvores e ocupar vias, o espaço aberto em frente ao Palácio Iguaçu nos possibilitaria uma mancha de multidão de quase 30 mil metros quadrados. Descontados esses obstáculos, podemos ter 20 mil metros quadrados. A prática indica que a média mais frequente em eventos abertos é de 3 pessoas por metro quadrado. Isso indica um total de 60 mil frequentadores. Para alegrar essas 60 mil pessoas, em som alto, a população de, minimamente, moradora num raio de 1 quilômetro a partir do Palácio Iguaçu seria também obrigada a ouvir discursos, propagandas, rezas, cânticos e músicas. A relação, num cálculo rápido, pode chegar a 60 mil que optaram por participar do evento contra 235 mil que sequer entendem as palavras expressas nas caixas de som.

No curto espaço desta coluna, discutiu-se apenas uma das inúmeras formas de burlar aquilo que é público na cidade. A lista das demais é longa: privatização das vagas de estacionamento ao longo de nossas ruas por empresas de valet, cercamento de áreas públicas para estacionamentos exclusivos, avanço de espaço comercial sobre passeios, carros com propaganda sonora... Poderia prosseguir nesta lista, mas, para tanto, teria de tomar o espaço das colunas que me avizinham neste jornal.

Clovis Ultramari, arquiteto, é professor na PUCPR.

Este texto faz parte de uma rodada quinzenal de discussões sobre a cidade. Também integram o grupo os arquitetos Fabio Duarte, Irã Taborda Dudeque e Salvador Gnoato. Tema desta rodada: Espaço público e espaço privado.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]