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O "malandro brasileiro" nasce de um equívoco. A conhecida alcunha do "homem cordial" etiquetada ao cidadão nacional, a perambular por estes tristes trópicos de Lévi-Strauss, cristaliza esse equívoco quando se lhe apõe a pecha de "pícaro". De início, pode-se afirmar que esse brasileiro, estereotipado em várias obras literárias nacionais, nada possui de "picaresco".

Do malandro ao pícaro há um fosso de diferentes graus de transgressões (mas de profundidades e efeitos diversos). Enquanto transgressor da ordem – ou delinquente ameno –, o malandro brasileiro transita alegremente entre a "traquinagem" e uma leitura bem-humorada e irreverente das suas incipientes "instituições sociais": a ordem.

Os nossos malandros, sem picardia, se equilibram no afiado gume da fina lâmina que separa a "ordem" da "desordem". Exemplo cabal desse alegre acrobata que anda descontraído na corda bamba do pequeno delito (como o crime da vadiagem, punido e preso pela "ordem" do Major Vidigal) à sacanagem bem-humorada, é o nosso Leonardinho Pataca que aí reina absoluto, com galhardia e a complacência dos que o rodeiam.

É o malandro com a ginga dos que se viram neste mundo sem eira nem beira, ou, como se diz no popular, "estão no olho da rua", estas seus feudos e monarquias. É um malandro: tira pequenos proveitos da nossa imensa legião de otários e "merdunchos". A Leonardinho não se pode chamar de "bandido", um fora da lei (nosso caubói no faroeste do fim da era colonial). E, frisando, muito menos a de pícaro.

O pícaro é um delinquente e marginal, cujos escrúpulos terminam, quando muito, nas algibeiras gordas das damas e cavalheiros europeus. Assim, eles protagonizam crimes e graves atentados à ordem estabelecida, seu sombrio ofício. É o aventureiro "descuidista" (ladrão de ocasião ou explorador da sedução; um Giácomo Casanova barato) que cultiva as aparências e não parece nunca ser o que é.

Eles pululam na literatura européia, sociedade já cristalizada há muito, na ordem estamental, estratificada e rígida, que desafia o aventureiro sem classe definida. Ele tenta penetrar sorrateiramente nesse mundo equilibrado há séculos, porque é um excluído, um ser límbico, devido, com certeza, ao cometimento de graves atentados contra a estabilidade dessa estrutura social estanque e impermeável.

Citemos alguns: o Lazarillo de Tormes, o Don Juan de Tirso de Molina, Estebanillo González, Tom Jones de Fielding, Giácomo Casanova, a pícara Justina de Gil Braz de Santillana. E, para fechar o sinistro elenco, não se pode deixar de lado o Tristram Schandy de Laurence Sterne. Todos esses sombrios personagens são a personificação da desordem.

Como transpô-los para os quentes (tristes) trópicos e fazê-los dialogar, no mesmo plano, com os nossos "pícaros", alegres e mergulhados na essência lúdica da vida? Impossível! Somos (ou éramos) uma sociedade em formação, nesse caldeirão étnico do "tempo do Rei", polarizada entre a ordem buscada pela pequena burguesia (aspirante a classe média) e a desordem que emana do processo de acomodação dessas camadas, em um mundo sem lei e esquecida: o Zé Povinho. Falamos com o foco na admirável obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida.

Chamar a um Leonardo Pataca Filho, a um Macunaíma (abstraída sua natureza mítica), a um irreverente, esperto e traquinas João Grilo do Auto da Compadecida, de Suassuna, ou a uma esperta, apesar de simplória Caroba de O Santo e a Porca, do mesmo Suassuna, é negar o homem brasileiro típico que resulta da mescla do sisudo caráter do português, sério na sua ética do trabalho, com a mansidão do índio e o caráter lúdico-hedonista do negro.

Já o pícaro europeu é triste, melancólico, é um criminoso, um "procura-se". Enfim, o que anda à margem da lei: um out of law e, via de regra, passa ao largo das leis penais. São indivíduos deletérios, embora suas epopeias escancarem a hipocrisia e o submundo moral das sociedades europeias, repletas de gente sem escrúpulos, obcecados pelo poder e pela riqueza. O pícaro assume esse contorno porque quer chegar a essa "ordem" por qualquer meio, por mais espúrio que seja. O crime sempre embebe sua "saga". São personagens à deriva, sempre à procura de uma vítima. O fim do pícaro, geralmente, é o laço de uma forca.

Leonardo Pataca Filho é um documento vivo desse povaréu trabalhador que queria ascender à pequena burguesia, dentro da ordem e das leis. O caráter documental da primeira parte da obra, a história do pai, realça essa assertiva ao captar o pano de fundo da narrativa, leve, airoso, socialmente confuso, mas "limpo" na ética bem comportada dos usos e costumes. Esse é o palco, pouco iluminado, que coloca o modo de vida e a cultura singelas de um povo que quer subir na vida, mas sem afrontar a "ordem", que está apenas querendo "achar seu lugar ao sol".

Macunaíma é uma soma mítica desses estereótipos brasileiros. Não é, pois, um malandro real: ele reina no "reino do faz de conta". Sua malandragem é fruto do temperamento de várias raças. Mas tanto ele, o malandro arquetípico, como o malandro real querem a "boa vida" da ordem e da estabilidade.

Já o pícaro é funesto, pois subir na vida nas sociedades já estratificadas europeias é quase impossível, porque íngremes e estanques. O anti-herói procura, então, brechas nesses "muros" sociais, mas só o delito lhe permite uma permanência fugaz entre as elites, as quais rouba, vitupera, ofende e foge na calada da noite, em busca de novas vítimas. Quando não é escorraçado.

Voltemos à personagem Caroba, de O Santo e a Porca, de Suassuna, que provém da farsa ligeira medieval (a Comédia de Enganos) e vence pela esperteza e não pelo delito. Que picardia há aí? Ela apenas, ao fim da comédia, se apossa ou retoma os seus direitos lesados; recupera o que é seu, em uma atmosfera de comédia, risos, enganos, humor e sarcasmo, cuja única vítima é Euricão Engole-Cobra, este, sim, um quase pícaro, mas alóctone (exógeno: é imigrante árabe) que enriquece à custa dos empregados, como Caroba, dos humildes, dos autóctones.

Encerremos este modesto ensaio descendo a cortina para esconder os funestos pícaros de além-mar para centrar os holofotes sobre os alegres "mambembes" nacionais, sem pecados mortais, como nossos "Leonardinhos e Cia.". Eis aí a síntese nas palavras do grande Antonio Cândido: "(...) tanto assim que lhes falta [aos malandros nacionais] um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo e constitui a maior desculpa das ‘picardias’. Na origem, o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo ditado pelas circunstâncias".

Deixemos os Leonardos e Mateus e Grilos e Carobas fazerem suas alegres travessuras nas sacristias, no sertão, nas igrejas por aí... e que os "pícaros" tremam nos patíbulos.

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