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| Foto: Brendan Smialowski/AFP

Em uma manhã de sábado, em março de 1997, eu me tornei uma bat mitzva h na Sinagoga Tree of Life, em Squirrel Hill.

Não que eu devesse estar ali, mas é que, em outubro do ano anterior, um incêndio tinha destruído o templo em que minha família congregava, o Beth Shalom, a pouco mais de um quilômetro de distância.

Quem é de Squirrel Hill ou já passou algum tempo no lugar em que tive a sorte de ser criada não se surpreenderia ao saber como a comunidade reagiu ao desastre.

Judeus e gentios correram rumo às chamas. Como o diretor executivo da Beth Shalom disse a um repórter na época: “Nem precisei olhar; sabia que todos tinham vindo comigo.” A frase me lembrou de um caso contado por Fred Rogers, um dos meus favoritos: “Quando eu era criança e via alguma coisa que me assustava no noticiário, minha mãe me dizia: ‘Procure os ajudadores. Você sempre encontrará alguém disposto a ajudar’.”

Squirrel Hill, o bairro onde Rogers morava, está cheio de gente assim. Sua casa ficava a três quadras da Tree of Life.

E ele não é o único; Mike Tomlin, técnico do Steelers, mora nove casas adiante. Rich Fitzgerald, executivo do condado, um pouquinho além. O prefeito, a cinco quarteirões. Eu passei a infância morando na mesma rua da sinagoga.

Na maioria das metrópoles norte-americanas, os judeus preferem viver nos subúrbios; Pittsburgh é a exceção

Embora meus familiares frequentem o templo há muitos anos, nenhum deles estava no santuário na manhã de sábado em que Robert Bowers, um homem de 46 anos aparentemente movido ao ódio pelo meu povo, começou a atirar nas pessoas enquanto gritava “Todos os judeus têm de morrer.”

Porém, onze vizinhos nossos foram mortos. Já esperávamos ouvir seus nomes. Minha família com certeza conhece a maioria, se não todos.

Meus pais, irmãs, tias e tios irão a muitos enterros esta semana, já que Squirrel Hill funciona como uma pequena aldeia (shtetl) urbana.

Na maioria das metrópoles norte-americanas, os judeus preferem viver nos subúrbios; Pittsburgh é a exceção, onde mais a metade da comunidade ainda vive na cidade, principalmente em Squirrel Hill. E, ao contrário de outros centros urbanos como Los Angeles ou Nova York, o núcleo judeu de Pittsburgh é pequeno a ponto de impedir que nossas visões políticas e religiosas o afetem ou dividam. Quando falei na sinagoga progressista dos meus avós, no fim de semana passado, vi ali liberais e conservadores, reformistas e ortodoxos, judeus nascidos nos EUA e em Israel, todos esperando para me abraçar – e discutir comigo – depois do sermão. Assim é Pittsburgh.

Há uma frase no Talmude que sempre teve um aspecto relevante para a nossa comunidade: “Kol Yisrael Arevim Zeh Bazeh”, ou “A responsabilidade de Israel inteiro é de uns com os outros.” Para nós, isso nunca foi uma bela teoria, mas a prática vivida no dia a dia.

Como acontece com muitas sinagogas pelo país, as portas da Tree of Life e outros shuls de Pittsburgh não têm segurança nas manhãs de sábado, pois estão abertas a quem quiser entrar. Vivemos de acordo com nossos valores – aqueles que o atirador parece desprezar.

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Uma das obsessões do suspeito nas redes sociais era a HIAS, ou Sociedade Hebraica de Auxílio aos Imigrantes, organização fundada no fim do século XIX para reassentar aos fugidos dos pogroms na Europa Oriental. Hoje, oferece ajuda a judeus e não judeus que são perseguidos ao redor do mundo.

Há algumas semanas, Bowers compartilhou o link para um evento chamado Refugee Shabbat, uma iniciativa nacional organizada por essa instituição, da qual a Tree of Life era participante. “Fala aí, HIAS! Quer dizer então que vocês gostam de trazer invasores hostis para viver entre nós?”, ele escreveu em uma rede social geralmente usada por ativistas do alt-right e nacionalistas brancos.

Naquela manhã, ele escreveu: “A HIAS gosta de trazer invasores para matar nossa gente. Não posso ficar sentado e ver meu povo ser abatido. Danem-se suas opiniões, estou entrando.”

A coincidência dolorosa é que a ênfase na porta aberta, em receber bem o estranho, era exatamente o tema da leitura dos judeus da Tree of Life e de todas as sinagogas, grandes e pequenas, em cada canto do planeta, naquela manhã do Sabá.

Eles liam os capítulos de Gênesis a que nos referimos como Vayera, a porção da Torá que se abre com os fundadores do judaísmo, Abrão e Sara, e descreve como três homens apareceram na cabana do casal, que os alimentou, deu abrigo e lhes lavou os pés.

Os estranhos chegam com uma mensagem chocante: Sara, que estava com 90 anos, seria mãe.

A mulher ri, incrédula, mas meses depois deu à luz Isaac – e os homens, como nos ensina a tradição, não são estranhos, mas anjos disfarçados.

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Estamos vivendo um momento de ascensão do antissemitismo aqui nos EUA. Basta pensar nas palavras de ordem repetidas no ano passado – “Os judeus não vão tomar nosso lugar” – em Charlottesville, ou os constantes ataques de Trump ao “globalistas”, “banqueiros internacionais” e a “imprensa corrupta”, noções comumente associadas aos judeus na mente dos antissemitas. Não é surpresa nenhuma ver essa retórica agressiva se traduzir em violência – de acordo com a Liga Antidifamação, esse tipo de incidente cresceu 57 por cento em 2017 –, ainda que Bowers critique o presidente por não ser nacionalista o suficiente. “Não tem #MAGA com essa infestação da judeuzada”, escreveu.

Toda comunidade judaica nos EUA agora terá de tomar decisões racionais para garantir que não seja a próxima vítima de um crime como o desse sábado. Por mais difíceis que sejam, entretanto, não devem nos fazer esquecer dos valores básicos que fazem de coletividades como Squirrel Hill o que são: acolhedoras, generosas e profundamente decentes. Uma das dádivas da experiência judaica nos EUA é ver como esses valores se firmaram e prevaleceram, dada a recepção e a segurança com que fomos acolhidos aqui.

Da mesma forma que todo casal judeu se casa sob um dossel aberto dos quatro lados – réplica da cabana desenhada para nós por Abrão e Sara –, todo núcleo judaico deve se manter aberto. Essa é a verdadeira fonte de nossa longevidade e resiliência.

Agora os judeus de Pittsburgh engrossam a lista de comunidades ao redor do mundo que foram aterrorizadas por fanáticos antissemitas, entre elas Kansas City, Bruxelas, Mumbai e Jerusalém. A dor que isso traz é indescritível.

Mas tenho certeza de que Squirrel Hill continuará a viver de acordo com os valores que os judeus prezam há mais de dois mil anos, pois eles não podem ser abatidos a tiros.

Bari Weiss é editora do New York Times.
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